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O CASTELO DE BELMONTE: DAS ORIGENS À DESCARACTERIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA


Torre de menagem e janela manuelina do Paço de Belmonte, vistos de Sudoeste. Fonte: Wikimedia Commons

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Sabendo o apreço dos nossos leitores por castelos medievais, e com algumas revisões parcialmente feitas com base nos comentários do Dr. Joaquim Silva Candeias a uma versão anterior do texto, voltamos a apresentar um caso muito interessante e atípico no contexto dos castelos medievais portugueses e das suas transformações: o Castelo de Belmonte.


Vista aérea do castelo e vila de Belmonte. Fonte: Duarte Fernandes Pinto – “A Terceira Dimensão”.

O actual concelho de Belmonte, na região da Cova da Beira, era inicialmente centrado na antiga “villa” romana de Centum Cellas, que evoluiu para uma aldeia na Idade Média com centro na antiga “pars urbana” – convertida em torre senhorial, provavelmente correspondente à torre na freguesia do Colmeal da Torre, já desmilitarizada e convertida em pardieiro quando um quinhão régio dos direitos sobre a torre foi aforada em 1291. Essa povoação acabou integrada no termo do concelho da Covilhã em 1186, mas foi doada por Sancho I ao bispo de Coimbra, a nosso ver algures entre Março de 1188 – notamos como apenas os Infantes Afonso e Pedro Sanches são referenciados como doadores do couto junto com os pais – e Fevereiro de 1194, quando o bispo concedeu foral com base nos costumes da Covilhã. Poucos anos depois, porém, possivelmente na sequência da ofensiva leonesa em 1198-1199 e das necessidades defensivas nesta região de fronteira, a população desse senhorio mudou-se para Belmonte, situada num local mais defensável, em cima de um maciço granítico, e teve um novo foral outorgado directamente por Sancho I em 1199.


“Villa” romana de Centum Cellas, no concelho de Belmonte. A partir da “villa” romana, ter-se-á formado um povoado que aparece documentado pela primeira vez no século XII, quando aparece como um couto doado por Sancho I algures entre 1188 e 1194 ao bispo de Coimbra, que lhe concedeu foral em 1194. Porém, uns anos depois, o mesmo prelado favoreceria a mudança do centro de poder senhorial para Belmonte, a cujos habitantes seria concedida carta de foral pelo rei em 1199. Na Idade Média, uma porção da “pars urbana” da “villa” foi convertida em torre defensiva, cujos vestígios podem ainda apreciar-se nas camadas de pedra mais pequenas no andar superior das ruínas clássicas. Em 1291, este edifício aparece provavelmente documentado como “paredeeyro que foy torre”, quando D. Dinis aforou os rendimentos do seu quinhão do edifício a Rodrigo Afonso e sucessores. Fonte da imagem: Wikimedia Commons

Foral outorgado pelo bispo Pedro Soares de Coimbra aos moradores de Centum Cellas (1194). ANTT, Cabido da Sé de Coimbra, doc. particulares, m. 7, n.º 33.

Pública-forma do foral de Belmonte (1199), emitida em 1298. ANTT, Cabido da Sé de Coimbra, Documentos régios, mç. 1, n.º 32.

Desde esta altura em diante, até finais do século XIV, Belmonte converteu-se no centro de um concelho cujo senhor era o bispo, estando ainda dependente do concelho da Covilhã no que se referia ao serviço militar para o rei - um mosaico de jurisdições sobreponíveis e frequentemente em conflito, típico do período medieval. É também desta época que datarão as primeiras estruturas defensivas conhecidas, referidas em 1223 numa carta de protecção de Sancho II, das quais infelizmente não restam vestígios: com a evolução da guerra de cerco no século XIII, rapidamente se terão tornado obsoletas.


Precisamente pela necessidade de protecção de uma região tendencialmente despovoada e ainda muito recentemente afectada por hostilidades recorrentes como a guerra civil de 1245-1247, o bispo D. Egas Fafes de Coimbra (1248-1267) decidiu erguer um novo castelo, para o qual obteve a autorização de D. Afonso III em 1258 ou 1266. Ou seja, a fortificação em causa - e ao contrário do velho mito de que só o rei as construía - foi erigida por um senhor em território seu, embora aqui também observemos um desenvolvimento típico do século XIII: a autorização monárquica. Efectivamente, já desde Sancho I os reis portugueses tentavam impor com mais ou menos sucesso o “ius crenelandi”, i.e., o monopólio da construção de estruturas militares, de modo a controlar a senhorialização do território e manter o seu poder militar sobre ele. Apesar de só com D. Dinis este princípio se ter tornado completamente efectivo e incontestável pela força do rei, depois do conflito em 1281 com o seu irmão D. Afonso por causa das muralhas de Castelo de Vide, o bispo de Coimbra parece ter jogado pelo seguro com o seu senhor e protector... especialmente quando já lhe tinham sido destruídos outros castelos “ilegais” em Coja e Avô, em 1254.


Desta fase da estrutura, cuja edificação certamente se prolongou na melhor das hipóteses pelas décadas finais do século XIII e teria possivelmente uma planta quadrada, resta sobretudo a torre de menagem, na face sudoeste. Está colocada num canto do recinto e não no centro, de modo a torná-la solidária na defesa do castelo, num desenvolvimento da defesa activa vulgarizado só mais tarde no período dionisino. Como observou Rita Costa Gomes, esta torre apresenta algumas semelhanças com a torre de menagem do Castelo de Vilar Maior, na mesma região. Também mais ou menos contemporânea, temos ainda a porta Sul, em cotovelo e encimada por matacães.


A torre de menagem e a entrada Sul do castelo, de finais do século XIII ou talvez de inícios do XIV e encimada por matacães.

Vista do anfiteatro e da torre de menagem do castelo. O estado actual do edifício, como resultado de uma intervenção do IPPAR e da Câmara Municipal de Belmonte, é francamente lastimável e descaracterizou o monumento. Aqui, Belmonte foi um dos primeiros casos de estudo para a nova vaga de intervenções modernistas que assolam os nossos castelos hoje em dia, para gáudio das empresas de construção civil, engenharia e arquitectura à procura de um escape da bolha da construção civil. Fonte: Wikimedia Commons

No contexto do longo processo de definição de fronteiras entre Portugal e Castela, iniciada já por Afonso III no Tratado de Badajoz (1267) e continuada por D. Dinis no famoso Tratado de Alcanizes (1297), Belmonte acabou um pouco mais distanciada da zona de fronteira. Daí resultou um período de decadência para este castelo, por falta de necessidade militar da fortaleza – um aspecto que pessoalmente matizamos aqui um pouco, contudo, pois durante boa parte do século XIV o castelo estaria ainda relativamente actualizado. Mesmo assim, não deixamos de concordar que a fortificação e a vila sofreriam imenso com as famosas crises do século XIV, um pouco como por toda a Beira Interior. Os surtos de peste bubónica, as guerras fernandinas e a crise de 1383-1385 levariam a uma redução considerável da população e a danos ao castelo, o que levou o bispo de Coimbra a obter do rei o estatuto de couto de homiziados para Belmonte em 1387. Por causa deste despovoamento e dos constantes conflitos jurisdicionais com a Sé da Guarda, o bispado de Coimbra optou finalmente por englobar a povoação num escambo de terras com Martim Vasques da Cunha em 1394, desembaraçando-se assim de uma terra pela qual já não havia grande interesse.


Maquete com uma reconstituição do castelo de Belmonte em finais da Idade Média.

Martim Vasques manteria o seu senhorio até 1396, quando se passou com seu irmão para Castela, como resultado de desentendimentos de boa parte da nobreza com João I, e as suas terras acabaram confiscadas pela Coroa. O domínio régio não duraria muito, pois a vila seria concedida ao Infante Henrique e ficaria mais tarde na posse da casa ducal de Beja até 1495, quando o duque Manuel subiu ao trono.


Mais constante em finais da Idade Média seria o domínio senhorial conferido pela alcaidaria do castelo: em 1398, João I nomeou como alcaide Luís Álvares Cabral, com raízes na vila devido à herança do morgadio originalmente instituído pelo bispo D. Gil Cabral da Guarda (natural da localidade). Independentemente da dança das cadeiras entre titulares do senhorio da vila, a família manteria a alcaidaria-mor, convertida em hereditária por graça de Afonso V em 1466. Este cargo dava direito a uma série de poderes e tributos sobre a população local que em 1496 constituíam uma soma apreciável, como se prova pelo inquérito ordenado por Manuel I neste ano, não obstante a escassez demográfica – 88 fogos, com um número de habitantes estimado em c. 360. Precisamente por estas razões, a corte senhorial dos Cabral instalou-se aqui durante a maior parte da segunda metade do século XV, o que leva a que se pense que o famoso navegador Pedro Álvares Cabral tenha nascido no castelo em finais de 1468 ou inícios de 1469, especialmente se se tiver em conta que tanto a mãe – Isabel de Gouveia – como a avó materna do navegador estão documentadas na região em anos próximos da data de nascimento de Pedro Álvares.


Representação da nau de Pedro Álvares Cabral na famosa expedição em direcção à Índia que “descobriu” o Brasil em 1500 no “Livro das Armadas”, um códice da segunda metade do século XVI. Fonte: Wikimedia Commons.

Túmulo dos pais de Pedro Álvares Cabral, Fernão Cabral e Isabel de Gouveia, na igreja de S. Tiago em Belmonte, próximo do castelo da vila.

Neste contexto, o castelo acabou reparado, recebeu adaptações às armas de fogo (como troneiras) e adquiriu a sua actual planta ovalada. Mas mais importante ainda, Belmonte conheceu nessas obras uma metamorfose assinalável no crepúsculo da Idade Média: foi edificado um imponente Paço do Alcaide. Efectivamente, nos séculos XII-XIV, um castelo não era habitualmente sítio de habitação da nobreza, por não reunir condições de habitação nem ser considerado como tal; o alcaide poderia morar aí com a sua mulher ou barregã em condições frequentemente espartanas, mas um castelo era acima de tudo uma estrutura defensiva e um pólo dinamizador do território. Porém, a partir de meados do século XIV, assistimos a uma residencialização dos castelos portugueses, com o aparecimento de paços dos alcaides ou mesmo régios – como o de Leiria – dentro dos recintos fortificados, chegando às vezes mesmo ao ponto de o castelo e o paço se confundirem como é o caso aqui ou, de forma ainda mais radical, em Ponte de Lima. O Paço do Alcaide de Belmonte teria 2 pisos e uma boa qualidade arquitectónica, mas dele só restam actualmente os muros exteriores e a famosa janela manuelina já do século XVI, pois o edifício acabou destruído num incêndio em 1694.


Detalhe da torre de menagem, onde se vê muito bem o negativo do telhado que pertencia ao Paço do Alcaide e a porta superior da Torre de Menagem.

Restos do Paço do Alcaide. Fotografia retirada do livro de Rita Costa Gomes mencionado na bibliografia.

Porta do Paço do Alcaide ainda sobrevivente, onde ainda se pode ver o brasão da família Cabral.

Porta inferior da Torre de Menagem, por onde se entra hoje em dia.

- Janela manuelina do Paço do Alcaide, ainda hoje o "ex libris" da vila de Belmonte. Em cima, vê-se um escudo de armas composto pela heráldica dos Cabral, com 2 cabral, e dos Castro, com 6 ruelas. Esta junção de símbolos alude à união das famílias devido ao casamento de João Fernandes Cabral com Joana Coutinho de Castro, que provavelmente encomendaram esta obra de arte. Fonte da imagem: e-cultura.

Janela manuelina vista da perspectiva de um visitante no interior do castelo.

Vista das estruturas na entrada do castelo, que a partir de finais da Idade Média serviram também como entrada do Paço do Alcaide.

Por fim, gostaríamos de chamar a atenção para o estado de conservação da fortaleza, alvo de intervenção conjunta do IPPAR (antecessora da Direção-Geral do Património Cultural) e da Câmara Municipal de Belmonte (Belmonte Município) em duas fases há cerca de 30 anos (1992/1993 e 1996/1997). Este tipo de “reabilitação”, com a construção de um anfiteatro e de uma série de estruturas devolutas em cimento, assim como a instalação de pedras de mármore (?) na torre de menagem para exposições

temporárias de pouco interesse para o espaço em causa – por exemplo, cartazes publicitários de cinema -, retirou autenticidade ao castelo ao forçar um pastiche visualmente doloroso para quem paga para lá entrar, em nome do dogma modernista e da marca do arquitecto, contra todas as normas de conservação do Património (mesmo as vigentes na época). E, pelo que percebemos junto dos funcionários, parece que esta observação é uma queixa muito frequente dos visitantes… Para além disso, onde ficaram os resultados das escavações arqueológicas? E porquê o desleixo com a colecção epigráfica e arqueológica na entrada? O resultado é francamente decepcionamente e esperamos que um dia esta tralha seja transferida de um espaço onde não se encaixa e talvez dar mais dignidade aos vestígios epigráficos expostos à toa na entrada do monumento: até lá, a entrada no Castelo de Belmonte continuará a ser uma ratoeira para turistas, sobretudo brasileiros em busca do lugar de nascimento de Pedro Álvares Cabral.


Fotografia com a colecção epigráfica e arqueológica do castelo de Belmonte dispersa pelo chão, sem qualquer cuidado de musealização nem com a sua preservação a longo prazo, à boa maneira portuguesa. Fonte da imagem: Aldeias Históricas de Portugal.

Imagem de conjunto do anfiteatro e estruturas adjacentes, que raramente é mostrada nos cartazes turísticos. Por que será? A resposta é óbvia para quem a vê: o castelo foi profundamente esventrado para se fazer um anfiteatro para festivais locais com direito a anexos que parecem vindos do Terceiro Mundo à esquerda, o que dificulta imenso uma leitura histórica do espaço a um olho pouco treinado de um leigo, já bastante confuso pela falta de explicações sucintas do espaço. Fonte da imagem: Google Maps.

Representação de parte do anfiteatro, profundamente descaracterizador do castelo.

Interior da Torre de Menagem, onde foi instalado um espaço “museológico” onde se exibiam cartazes de cinema em 2021. Sim, o caro leitor paga 2 euros para ver epigrafia à toa sem explicações na entrada, um anfiteatro degradado e uma exposição de cartazes de cinema enquadrada por uma estrutura em mármore, para além dos muros do castelo! Uma explicação da História de Belmonte e do seu castelo, com a exibição de objectos ligados ao edifício, fica para as calendas gregas. E claro, não é possível a subida ao topo da torre de menagem...

Detalhe da Torre de Menagem, onde se vê uma sigla de canteiro com a representação de um báculo, provavelmente episcopal tendo em conta que o promotor da obra – que pagaria ao artesão responsável por esta marca – era o bispo de Coimbra. Este conjunto de marcas deveria ser melhor investigado e receber mais atenção, pois neste momento encontram-se ofuscadas pela “museografia” – se lhe podemos chamar assim -, pelas luzes de sala de espectáculo e pelo modernismo visualmente chocante da arquitectura contemporânea.


Fontes:


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Vicente, Maria da Graça Antunes Silvestre (2013). “ ‘Entre Zêzere e Tejo’ Propriedade e Povoamento (séculos XII- XIV)”, vol. I. Dissertação de Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. ~ José

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