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DE BESTIAL A BESTA: OS CAVALOS DE GUERRA MEDIEVAIS NÃO ERAM PÓNEIS

Atualizado: 12 de fev. de 2022


Comparação entre o tamanho de um cavalo e um homem de pé.
Comparação entre o tamanho de um cavalo e um homem de pé. As fontes iconográficas devem ser levadas com reservas, visto que a liberdade artística tem sempre impacto neste tipo de obras. No entanto, também não devem ser totalmente descartadas como fonte secundária para complementar o estudo das proporções dos cavalos naquela época. Fonte: História de Alexandre, o Grande por Jean Wauquelin, século XV. Biblioteca Nacional de França.

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Para esclarecer algumas notícias recentemente vindas a público por jornais "online" sobre o tamanho dos cavalos de guerra medievais e a sua comparação com póneis, convidámos para escrever sobre este tema o nosso estimado amigo Afonso Sousa, licenciado em História, com "menor" em Arqueologia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Correntemente a frequentar o 2º ano de Mestrado em História - ramo de Idade Média, com obra proposta para publicação sobre o cavalo na Idade Média, e a quem muito agradecemos a sua preciosa colaboração.

DE BESTIAL A BESTA: OS CAVALOS DE GUERRA MEDIEVAIS NÃO ERAM PÓNEIS...

Recentemente, foram publicadas diversas notícias anunciando a pequenez do cavalo utilizado pelos cavaleiros na Idade Média (veja-se, por exemplo, a notícia do Observador: “Afinal, os grandes cavaleiros da Idade Média não combatiam a cavalo, mas em póneis”). Estas notícias tiveram por base um artigo intitulado “In search of the ‘great horse’: A zooarchaeological assessment of horses from England (AD 300–1650)”, publicado na International Journal of Osteoarcheology, em 2021. De facto, este estudo concluiu que os equídeos medievais estariam longe de ter a estatura que esses animais atualmente comportam - algo que, diga-se de passagem, já não é propriamente uma novidade. Podemos encontrar dados semelhantes, por exemplo, num estudo de 2018 (“The brede of good & strong Horsis’: zooarchaeological evidence for size change in horses from early modern London”, da Post-Medieval Archaeology).


a diferença de tamanho entre um cavalo e um pónei
Só para relembrar a diferença de tamanho entre um cavalo e um pónei... e já descontando que os cavalos medievais eram comprovadamente mais pequenos que os actuais. https://www.istockphoto.com/br/foto/grande-cavalo-e-p%C3%B4nei-amigo-gm482390082-69998047

Contudo, estes dados científicos têm sido interpretados de forma errónea, levando a conclusões pouco realistas. Há três grandes erros em que estas notícias incorrem. Em primeiro lugar, não esclarecem que a altura do cavalo se mede, normalmente, pela cernelha (região localizada entre os ossos do ombro e a base do pescoço, visível na imagem abaixo), ficando de fora todo o comprimento do pescoço até à nuca. Desta forma, quando imaginamos que um cavalo mede 150 cm incorremos no erro de imaginar que essa é a altura total do animal.

Diagrama com as várias partes do corpo de um cavalo.
Diagrama com as várias partes do corpo de um cavalo. Fonte https://desmanipulador.blogspot.com/2014/07/o-cavalo.html

Em segundo lugar, estas notícias interpretam os dados de forma anacrónica, uma vez que comparam a altura do cavalo medieval com a altura do Homem actual, esquecendo-se que as pessoas que viveram no medievo também eram de menor estatura. Para ajudar a esta questão podemos trazer dados relativos à estatura dos indivíduos da Idade Média, através do artigo “Trends in Adult Stature of Peoples who Inhabited the Modern Portuguese Territory from the Mesolithic to the Late 20th Century”, publicado na International Journal of Osteoarchaeology (2008).

Representação equestre no livro do Apocalipse de Lorvão (1189), fólio 198.

Este estudo apresenta duas estimativas para a estatura de um indivíduo medieval em Portugal (“Mean stature estimates calculated from femur maximum length” e “Mean stature estimates calculated from humerus maximum length”). Estas estimativas resultam numa altura média (contando com ambos os sexos) de 161cm, no primeiro caso, e de 160cm no segundo. Dados que estão longe da altura média dos portugueses da actualidade.

Fonte https://www.medievalists.net/2018/08/famous-horses-medieval-legends/

Em terceiro lugar, também não é tido em conta que os cavalos de guerra não seriam, de todo, cavalos comuns. Muito pelo contrário. Veja-se, por exemplo, o que refere João Gouveia Monteiro: “Já se tem calculado que, em muitos dos reinos ocidentais tardo-medievos, o mais barato dos cavalos para montar custava cerca de 24 vezes mais do que um cavalo de trabalho de um camponês, um palafrém umas 400 vezes mais, e um bom cavalo de guerra... 800 vezes mais” (MONTEIRO, João Gouveia – A Guerra em Portugal- Nos Finais da Idade Média, p.159).

Fonte http://www.fontane-physio.de/Prints/wyizwy-851776/and-Horses-PRINT.php

É certo que os cavalos de menores dimensões seriam utilizados no trabalho agrícola, transporte de mercadorias, etc. E mesmo no contexto de guerra teriam a sua importância, não em combate, mas no transporte de tudo o que uma campanha militar envolve. No entanto, os equídeos utilizados em combate, pelos cavaleiros medievais, seriam aqueles que se destacavam por, entre muitos outros aspectos, a sua capacidade física.

Representação frontal do cavalo de Wachsmut von Künzingen...das mais bem conseguidas artisticamente, diga-se 😛 Fonte: Codex Manesse, UB Heidelberg, Cod. Pal. germ. 848, fol. 160v. (entre 1305 e 1315)

Estas três facetas ajudam-nos a perceber que os cavalos de guerra do medievo não seriam tão pequenos quanto se tem dito. Se colocarmos um indivíduo medieval comum, com 160 cm, ao lado de um cavalo de boas dimensões, aos olhos da época, com os mesmos 160 cm (no estudo, já referido, publicado em 2021 na International Journal of Osteoarcheology, são apresentados cavalos no “high medieval period” que excedem esta estatura), podemos perceber que a altura da cernelha desse equídeo seria igual à da pessoa. Contabilizando o restante corpo do animal, percebemos que o cavalo seria consideravelmente mais alto do que o indivíduo comum.

Iluminura de um cavaleiro
Iluminura de um cavaleiro atribuída ao italiano Pacino di Buonaguida, de Regia Carmina,(Tuscânia), c. 1335-c. 1340. Fonte http://worksofchivalry.com/horseback-riding-in-the-middle-ages-jordanus-rufus-of-calabria/

Para além disto, podemos ainda trazer para esta questão as fontes iconográficas. Bom exemplo disso são os cavaleiros representados no Apocalipse de Lorvão (abaixo reproduzido), datado de finais do século XII. Embora não possamos tomar como exactas as proporções dessa representação, também não podemos ignorá-las por completo. Facilmente se percebe que aqueles animais não se parecem propriamente com póneis. Muitos outros exemplos podem ser encontrados em inúmeras fontes iconográficas, sendo sempre necessário acautelar qualquer conclusão precipitada e alicerçada apenas na sua observação.

Justas em Bruges no século XV.
Justas em Bruges no século XV. Fonte https://www.medievalists.net/2014/07/urban-jousts-the-later-middle-ages-white-bear-bruges/

Conclui-se, portanto, que os cavalos medievais estavam longe da estatura dos atuais. Isto não equivale, no entanto, a afirmar que estes eram pequenos, uma vez que os dados zooarqueológicos correspondem ao período medieval e devem ser olhados tendo em conta o seu contexto.

Afonso Sousa

Cena de caça
Cena de caça, iluminura do "Livre de chasse" de Gaston Phébus (1387-89), 1405-1410, Museu de Cluny, Paris.

Cena de caça
Cena de caça, iluminura do "Livre de chasse" de Gaston Phébus (1387-89), 1405-1410, Museu de Cluny, Paris.

Bibliografia:

AMEEN, Carly, et al. – “In search of the ‘greathorse’: A zooarchaeological assessment of horses fromEngland (AD 300–1650)”, International Journal of Osteoarchaeology, 2021, pp.1247–1257.

ARAÚJO, Yann Loïc – “Contributo para a história da alveitaria e dos cavalos de guerra no Portugal medieval”, Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias, 2004, pp.19-25.

MARTINS, Miguel Gomes – “Armas e cavalos: os arsenais e as coudelarias das Ordens Militares em Portugal na Idade Média”, In FERNANDES, Isabel Cristina F. (coord. cient.) – Castelos das Ordens Militares. Atas do Encontro Internacional. Lisboa, Direção-Geral do Património Cultural, 2013, pp. 409-426.

MARTINS, Miguel Gomes – A Arte da Guerra em Portugal: 1245 a 1367. 1ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, pp.267-288

MONTEIRO, João Gouveia – A Guerra em Portugal- Nos Finais da Idade Média, 1ª ed. Lisboa: Editorial Notícias, 1998, pp.151-162.

THOMAS, Richard, et al. – “The brede of good & strong Horsis: zooarchaeological evidence for size change in horses from early modern London”, Post-Medieval Archaeology, 2018, pp.224-238.


 

Apresento também a opinião muito qualificada de Zac Evans sobre este assunto:

Link directo do video: https://youtu.be/I8gAxM3ZP08

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