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Um dia na vida de um rei medieval

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',



Um dia na vida de um rei medieval:


No ano de 1404 Cristina de Pizan terminou a sua obra "Livro dos feitos e boas maneiras do sagaz rei Carlos V", uma biografia desse monarca Francês e um guia sobre como um rei ideal deveria viver e reinar. Cristina tinha acesso privilegiado à Corte visto que seu pai, Tomasso di Pizano, era o médico e astrólogo pessoal de Carlos. Além disso, alguns anos mais tarde ela pôde consultar outros homens e mulheres que serviram o rei, incluindo o seu camareiro e valet.


A sua descrição começa com o despertar do rei, tipicamente entre as 6 e as 7 da manhã. Depois da primeira oração matinal, Carlos vestia-se enquanto trocava algumas piadas com os seus criados, como Cristina escreveu:


"Quando o rei tinha terminado de se vestir de acordo com a agenda do dia, o seu capelão, um padre muito honrado e distinto, trazia-lhe o seu breviário e ajudava-o a recitar as suas "horas" de acordo com o dia canónico do calendário. Pelas 8 da manhã o rei assistia à missa, celebrada todos os dias com cânticos solenes."


Depois da missa, o rei saia da capela e enquanto percorria o pátio do paço, era interpelado por uma multidão:


"Assim que saía da capela, todo o tipo de pessoas, ricas e pobres, meninas ou senhoras, viúvas ou qualquer um que tivesse problemas podia apresentar as suas petições, às quais o rei gentilmente parava para ouvir tais suplicações respondendo directamente aquelas que pareciam razoáveis ou piedosas. Os casos mais duvidosos ele entregava aos seus conselheiros para serem melhor examinados."


De seguida, Carlos dirigia-se ao seu Conselho, onde o esperavam os mais altos titulares de cargos do governo:


"Depois disto, em dias específicos, ele se encontrava com o seu Conselho e com alguns nobres de seu próprio sangue e clérigos que acontecia estarem presentes. Se algum assunto particularmente complexo não o atrasava ele se sentava à mesa para comer às 10 horas da manhã".


Alguns historiadores expressaram surpresa pela curta duração das suas reuniões com o Conselho Régio mas o facto de Carlos ter uma saúde frágil pode ser uma razão de força maior para isso. Cristina então descreve o seu "café da manhã":


"A sua refeição não era demorada, pois ele não gostava de comida muito pesada dizendo que incomodava o seu estômago e lhe perturbava a memória. Bebia apenas um copo de vinho fraco, sem condimentos e leve na côr. No fim da refeição, para alegrar o espírito, ouvia música suave e doce tocada por instrumentos de corda".


Assim que a refeição terminava, o rei abria as portas do salão real a todos os convidados:


"Ali podem-se encontrar diversos embaixadores, nobres e cavaleiros, de quem havia tal multidão, tanto de estrangeiros como do seu próprio reino, que alguém só a custo conseguia virar-se para trás. Ali o rei recebia notícias de todo o tipo de lugares: incidentes e detalhes das suas guerras ou das batalhas de outros reinos, e outros assuntos que tais. Aí ele acordava que se deveria fazer conforme foi aconselhado, prometia resolver algum assunto com o seu Conselho, rejeitava o que não era razoável, acordava favores, assinava documentos pela sua mão, dava presentes a quem os merecia, entregava cargos vagos ou respondia a petições. Ocupava seu afazeres com tais detalhes durante cerca de 2 horas, depois das quais se retirava para descansar por uma hora".


Por esta altura seriam já 3 da tarde, novamente hora da missa:


"Depois da missa, Carlos passava algum tempo com os seus companheiros mais íntimos em diversões prazerosas, como contemplando as suas jóias e outros tesouros. Ele tomava seus tempos de recriação para que suas responsabilidades não afectassem a saúde, visto que tinha constituição frágil. Assim, ele assistia à missa das "vésperas", após a qual, se fosse Verão, por vezes passeava nos jardins do seu Hotel (paço) de Saint Pol, onde a rainha e os seus filhos se lhe juntavam. Então ele falava com as senhoras da Corte, perguntando sobre as suas famílias. Por vezes recebia presentes curiosos, como peças de artilharia e outros armamentos e uma variedade de outras coisas. Mercadores traziam peças de seda, tecido ornamentado com ouro e todo o tipo de jóias e objectos exóticos os quais ele mostrava aos seus familiares".


"No Inverno ele ocupava o seu tempo ouvindo leituras de histórias das Escrituras sagradas, dos feitos dos Romanos, ou a sabedoria dos filósofos, até à hora da ceia (jantar) que era bem cedo para uma refeição geralmente tardia. Depois passava algum tempo de recriação com os seus barões e cavaleiros antes de se retirar para dormir."


No seu artigo "Política ou Lazer? Um dia na vida de Carlos V de França (1364-1380)", Michael Brauer detalha os textos da época e examina os palácios régios procurando vestígios da sua actividade diária. Brauer nota que alguns dos seus paços como o Louvre o rei tinha uma série de corredores e escadas semi-secretas que lhe permitiam mover-se à vontade sem ser visto, permitindo ficar fora dos olhares públicos sempre que achasse necessário.

Brauer adianta ainda que o monarca passava o seu tempo em três componentes sociais: interagindo com o público, com os seus cortesãos e familiares, e sozinho em privado (embora os seus criados pudessem estar com ele ou perto dele). Muito do seu papel real seria aparecer tanto entre o povo como entre os cortesãos. Brauer comenta:


"A razão para tal não era tanto para corrigir as deficiências administrativas de um estado pré-moderno, pois apenas uma pequena parte dos problemas são resolvidos se o monarca trata deles directamente, mas mais para comunicar justiça para os seus súbditos, passando a mensagem de que o rei estava actuando "ad hoc" como o sábio rei Salomão, ele é o mais alto juíz do reino mas ainda assim toma nas suas mãos as questões dos seus súbditos mais humildes".


O historiador da Universidade de Salzburgo também aponta que apesar dos testemunhos de Cristina serem baseados em observações factuais e nas memória de pessoas presentes, ela também pretendia criar uma imagem do rei ideal, imagem que deveria ser um exemplo para futuros monarcas. Cristina de Pizan queria que os seus leitores imaginassem a rotina diária de Carlos V dividida em três partes: oração e estudo; afazeres do reino; prazer e recriação. Na sua ideia estes três elementos deveriam formar um conjunto único. Conduzindo a sua vida por uma ordem rígida, Carlos não apenas garantia a sua saúde, como dava um exemplo de vida política, tudo junto formando uma vida ordenada. Por analogia, Cristina explica que uma vida ordenada era essencial para qualquer forma de governação: "A ciência política, suprema entre as artes, ensina o homem a governar-se a si próprio, a sua família e os seus súbditos em todas as matérias de forma justa. Igualmente, é preciso tal disciplina para governar reinos e impérios."


- Pedro Alves.


Luís IX (c. 1214-1270)

Guillaume de Saint-Pathus escreveu também sobre as atividades diárias de outro rei francês, Luís IX (c. 1214-1270), rei da dinastia dos capetos e canonizado como santo pela Igreja Católica em 1297. No caso Guillaume menciona as atividades litúrgicas, ligadas a vida religiosa, algo conveniente a um rei tão pio como São Luís.

"O santo rei dizia suas horas canônicas muito devotamente com um de seus capelães nas horas exigidas ou as dizia um pouco antes da hora mas o mínimo possível [respeito monástico do tempo litúrgico]. No entanto, mandava cantar solenemente todas as horas canônicas nas horas exigidas sem antecipar-lhes o horário, ou antecipando o mínimo possível, por seus capelães e por seus clérigos e as ouvia muito devotamente [...] O costume do santo rei quanto ao serviço de Deus era o seguinte: o santo rei se levantava à meia-noite e mandava chamar clérigos e capelães e então eles entravam na capela na presença do rei todas as noites: cantavam então em voz alta com acompanhamento as matinas do dia e depois as de Notre-Dame e durante esse tempo o santo rei dizia umas e outras matinas nessa mesma capela em voz baixa com um de seus capelães e, matinas ditas, os capelães voltavam para a cama que quisessem. Passado um pouco de tempo, e às vezes tão pouco que eles não tinham tempo de dormir antes de voltar, mandava chamá-los para rezar a hora prima, e eles cantavam prima na capela em voz alta e com acompanhamento e prima de Notre-Dame, e o santo rei presente dizia uma e outra com um de seus capelães.


Mas no inverno prima era dita pouco antes do nascer do dia; depois da Páscoa matinas é que eram ditas pouco antes ou pouco depois de se levantar o dia [...] E, terminada prima, o santo rei ouvia todos os dias uma prima missa pelos mortos, freqüentemente rezada sem música, mas nos aniversários ou se tivesse morrido alguém de sua intimidade mandava cantar a missa com acompanhamento. Todas as segundas-feiras o rei mandava cantar a missa dos Anjos em voz alta e com acompanhamento, todas as terças a da Santa Virgem Maria, todas as quintas a missa do Espírito Santo, todas as sextas a missa da Cruz e todos os sábados ainda missa de Notre-Dame. E nessas missas mandava todos os dias cantar a missa do dia em voz alta e com acompanhamento. Na Quaresma ouvia todos os dias três missas, uma das quais ao meio-dia ou por volta de meio-dia [...]

Na hora do jantar, antes de comer ele entrava em sua capela e os capelães rezavam a hora tércia diante dele com músicas e as preces de meio-dia e de Notre-Dame, mas ele rezava essas mesmas horas em voz baixa com um de seus capelães [...] Todos os dias, ouvia vésperas com música e as rezava em voz baixa com um capelão. Depois de cear, os capelães entravam na capela do rei e cantavam completas em voz alta e com música do dia e de Notre-Dame. E o santo rei, quando estava em seu oratório, ajoelhava-se habitualmente enquanto duravam as completas e passava todo esse tempo em orações. Todos os dias, ditas as completas da Mãe de Deus, os capelães cantavam no mesmo lugar uma das antífonas de Notre-Dame muito solenemente e com música, às vezes Salve regina, às vezes uma outra. Depois, o santo rei entrava em seu quarto e então ia lá um de seus sacerdotes levando água benta com a qual aspergia o quarto dizendo Asperges me e a oração que se diz em seqüência. E quando chegava a hora de recolher-se ao leito, dizia uma e outra completa com o capelão."

A passagem original pode ser encontrada na "Vie de Saint Louis" de Guillaume de Saint-Pathus, entre as páginas 33 e 35. O trecho em si foi retirado da biografia de São Luís por Jacques Le Goff, que foi traduzida em português por Marcos de Castro, no caso encontrei nas páginas 497 e 498 da obra.

- Pedro Henrique


FONTES ADICIONAIS:




FONTES BILBIOGRÁFICAS:


"Livre des faits et bonnes mœurs du sage roy Charles V", Christine de Pizan, British Library, MS Royal 15 E II.


“Politics or Leisure? A Day in the Life of King Charles V of France (1364-80)”, by Michael Brauer, The Medieval History Journal, Vol.18:1 (2015).



Afonso X, o Sábio ou o Astrólogo (Toledo, 23 de Novembro de 1221 – Sevilha, 4 de Abril de 1284), foi rei de Castela e Leão de 1252 até a sua morte em 1284.








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