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A DESCRENÇA NA IDADE MÉDIA


São Tomás de Aquino", Carlo Crivelli, séc. XV, parte do Retábulo Demidoff
São Tomás de Aquino", Carlo Crivelli, séc. XV, parte do Retábulo Demidoff

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


A DESCRENÇA NA IDADE MÉDIA

Abadia de Santo Emerão, ca. 1070. No seu scriptorium, a pena do monge pousa sobre o pergaminho. O irmão mede muito bem as suas palavras, inspira, e escreve: “Si vel ulla in scripturis sacris veritas sit ac profectus, vel si deus omnipotens constet prorsus dubitavi”. Ou, em Português moderno e com alguns acertos: “Duvidei plenamente da verdade das Sagradas Escrituras, ou da existência de Deus Todo-Poderoso”. Para o monge Otlo de Santo Emerão (em Regensburg, na actual Alemanha), estas palavras traduziram o sofrimento quase sacrílego de uma crise espiritual. Para nós, um milhar de anos mais tarde, traduzem algo muito diferente: possivelmente o primeiro momento de dúvida, e de descrença do divino, registado na Europa Medieval cristã.


DESCRENÇA NUM MUNDO CRENTE

A descrença – ou, como lhe chamaríamos hoje em dia, o ateísmo – não era um conceito exactamente recente. Pensemos a título de exemplo no filósofo grego Teodoro, cognominado o Ateu (!), nos séculos IV-III a.C.; ou no cepticismo religioso do sábio muçulmano Abu Isa al-Warraq no século IX. No cadinho da Cristandade, porém, forjou-se uma Europa totalmente permeada pela religiosidade, uma Europa em que “ateísmo” não era termo em uso – apesar de ser abordado, de maneira bastante dura até, em textos legais e tratados de teologia. De uma maneira ou outra, com mais ou menos ortodoxia, quase toda a população acreditava no Divino. Havia variações individuais na crença, bem o sabemos (ou não fossem prova disso as guerras intestinas entre diferentes facções religiosas), mas no geral a fé era um dos alicerces estruturantes não só do quotidiano mas também da mundivisão medieval (por algum motivo Georges Duby designou esta época como “o Tempo das Catedrais”). Mesmo o momento de descrença do nosso monge ratisbonense é construído a partir da mitologia cristã: em vez de uma incerteza estritamente pessoal, Otlo explica ao leitor como o Diabo lhe segredava ao ouvido palavras cada vez mais vexantes sobre Deus e sobre o próprio papel de Otlo na sua comunidade. A dúvida para Otlo era menos um exercício intelectual, portanto, e mais uma refrega entre Deus e o Diabo, que acabava por ter por campo de batalha o espírito do nosso pobre monge. Nem tampouco podemos recusar a hipótese de que descrença no Divino cristão não represente descrença num divino abstracto, numa camada de espiritualidade sobre o mundo.


De qualquer forma, esta descrença de Otlo é uma descrença escondida nos claustros de uma abadia. A descrença medieva, quando surge em público, fá-lo en passant, de forma efémera, terreno fértil do rumor, do diz-que-disse, do dedo apontado ao vizinho.


Não é de espantar, portanto, que alguns dos melhores relatados de ateísmo medieval surjam em inquirições da Igreja. Duas das melhores fontes para o estudo do ateísmo medieval são os registos das inquirições conduzidas pelo bispo Jacques Fournier (futuro papa Bento XII) no Condado de Foix (França), no início do século XIV; e as inquirições em torno da cidade de Sória (Espanha) em finais do século XV. E estes relatos deixam a sua marca na grande força de controlo da vida pública: a Lei.


HERESIAS E BLASFÉMIAS

Como classificar o ateísmo medieval? Numa palavra: dificilmente. Não havendo conceito formado e disseminado – o ateísmo como o conhecemos hoje em dia, isto é -, a negação ou recusa total do divino caía num saco misto de heresias e blasfémias que incluía a negação de apenas certas vertentes ou práticas da doutrina cristã, a rejeição a sangue quente de Deus ou outros aspectos do sagrado, ou até comparações menos positivas com as outras duas fés abraâmicas (uma história para outra altura).


A grande pena para heresia em grande parte da Europa era a morte pelo fogo. Em Portugal, e para além da fogueira, uma lei do tempo de D. Dinis mandava que se arrancasse também a língua ao herege pelo crime de descrença. D. Afonso V terá suavizado as coisas para quem renegasse a Deus ou à Virgem: Multas de 1000 reais para nobres e cavaleiros (500 se se renegassem apenas os santos), e “açoite no pelourinho aos peões, com uma agulha cravada na língua” [Oliveira Marques, p. 207]. Isto a não ser em caso de reincidência e/ou convicção na manifestação de descrença e renegação – aí, mantinha-se a pena de morte. E este era apenas o lado secular da questão: ao longo da Baixa Idade Média, as autoridades da Igreja desdobraram-se em condenações e súmulas contra o crime da blasfémia e a descrença, que são aliás incumbidas de julgar. Veja-se a título de exemplo S. Tomás de Aquino, e os duros castigos que profetiza para os blasfemadores e os descrentes – não só nesta vida mas também na morte, renegados a um canto solitário do inferno. Para os grandes teólogos da Cristandade, o “pecado de língua” era o oitavo pecado não-oficializado na lista de pecados capitais – um crime nefasto, não só pelo seu efeito potencialmente desagregador da comunidade religiosa como, também, pela potencial ira divina que podia fazer abater sobre os fiéis.


À luz destas leis, é muito possível que Otlo tivesse sido condenado à morte se tivesse expressado convictamente o seu momento de dúvida. Como ele estaria (se é que não estiveram) Raimond de l’Aire, ouvido por Fournier, que testemunhas acusaram de ter afirmado que Deus nunca fez o mundo, que o mundo sempre existiu, que a ressurreição era um mito, que a Eucaristia não passava de pão e vinho, que os rituais dos padres eram desprovidos de significado e importância, e que dava aos pobres não pela sua alma mas para que outros o vissem como pessoa boa e caridosa; Diego Mexias, que as inquirições de Sória acusam de instar que nada havia senão nascer e morrer, ter uma boa companheira e bastante que comer; ou Diego de Barrionuevo, acusado de ter dito em 1494 que o Céu e o Inferno eram mentiras para assustar o povo, comparando-os a um bicho-papão para as crianças.


Mesmo a descrença parcial, blasfémia em grau menor, continuava a ser extremamente perniciosa para as autoridades religiosas. Uma mulher da vila de Merviel, chamada Aude, foi ouvida pelo bispo Fournier por alegadamente duvidar da transubstanciação e da existência de Deus. Talvez por ter demonstrado uma incredulidade inocente, e não uma convicção firme na sua dúvida, foi “apenas” condenada a usar sempre uma cruz amarela bordada nas costas, marcando-a como herege para o resto da sua vida. Renegar Deus ou a Virgem ou os santos num momento mais aceso parecia ser ocorrência habitual, particularmente no crepúsculo da Idade Média. As inquirições de Sória dizem-nos que, num jogo de “pelota” em 1487, um homem chamado Rodrigo terá renegado a Deus e mandado S. João dar uma curva ao bilhar grande (por outras palavras). Sete anos mais tarde, outro homem, chamado Bernaldino Pajarillo, terá rejeitado Deus num acesso de fúria durante um jogo de azar. Não obstante a fúria dos teólogos ante o “pecado de língua”, para estes casos – para a maioria dos casos de blasfémia, aliás - conta-nos Luís Miguel Duarte que o habitual procedimento em Portugal era um pedido de perdão régio por parte do acusado e pagamento de uma multa. Como aos monarcas convinha mais terem cofres cheios e súbditos com as línguas intactas, os pedidos eram quase sempre acedidos, e as multas, pagas.


Sabemos que o nosso Otlo não se atreveu a partilhar as suas dúvidas com ninguém:“propter inauditam ipsius impugnationis qualitatem ulli fratrum aperte indicare vererer” (por alto: “dada a natureza inaudita destes ataques, não ousei mencioná-los a qualquer um dos irmãos”). Considerando a variedade de castigos possível, não o podemos censurar.


OS PRINCÍPIOS DA DÚVIDA…

No entanto, não era apenas o medo de punição que fazia o nosso Otlo guardar segredo; é que o mero acto de descrer era peculiar em si mesmo. A dúvida era um fenómeno circunscrito ao indivíduo, sem registo literário ou sequer oral. Para além de Otlo, tomemos como exemplo deste individualismo da descrença Guillemete de Ornolac, que afirmou à inquisição de Fournier que a alma e o além-morte não existiam. Quando indagada sobre a origem destas suas convicções, Guillemete confessou tê-las formado sozinha, depois de muito pensar (e também ela foi obrigada a usar uma cruz amarela, como Aude). O mesmo processo de introspecção é o que deverá ter levado o autor anónimo da colectânea de textos intitulada Gesta Romanorum (Feitos dos Romanos), de finais do século XIII, a incluir no capítulo “De statu mundi actuali” (Sobre o Actual Estado do Mundo) a observação “deus est mortuus”, lit. “Deus está morto” [Keller, 1842: 223]. Semelhante exercício terá feito o poeta italiano Guido Cavalcanti de acordo com o “Decameron” de Boccacio, afirmando-se que sobre ele “si diceva tra la gente volgare che queste sue speculazioni eran solo in cercare se trovar si potesse che Iddio non fosse” (“se dizia, entre as gentes do povo, que estas suas especulações mais não tinham por propósito que determinar se Deus podia não existir”) [Decameron, cap. 9]. Não havia ainda estruturas de discussão que permitissem a partilha destas ideias; qualquer possibilidade de contágio da descrença era imediatamente esmagado – fosse pelos poderes instituídos, fosse por simples pressão social.


… E OS FINS

Por todos estes motivos, não sabemos quão disseminado o fenómeno da descrença terá sido nesta época. Não há qualquer maneira de o quantificar a partir dos poucos relatos, muitos dos quais espúrios, outros ambíguos. Tudo o que sabemos é que existia, em toda a Europa – a reacção dos poderes instituídos aponta firmemente nessa direcção. Porque outro motivo se redigiriam leis contra ela? Que outro motivo possível teria levado S. Tomás a conceber as suas Quinque viæ (Cinco Vias) para provar a existência de Deus, que não fosse convencer quem teimasse em não acreditar?


Não obstante o quão tabu ou bizarro o tópico era, Otlo deve ter desconfiado da existência da dúvida – pelo menos noutros clérigos como ele próprio. Apesar das palavras que abriram esta pequena publicação, o volume em que se encontram é uma narrativa de reencontro com a fé. Talvez se Otlo tivesse tido a oportunidade de conhecer o autor da Gesta Romanorum, lido sobre a personagem de Guido Cavalcanti, ou discutido em surdina os seus “ataques” com Diego Mexias, estas palavras nunca tivessem sido guardadas para a posteridade. Talvez Otlo tivesse abandonado a abadia, vendo nos ditames da sua fé as mesmas coisas que Raimond de l’Aire. Em vez disso, Otlo sentou-se no seu banco e escreveu a outros futuros irmãos, procurando convencê-los da existência de Deus nos seus momentos de dúvida.


~ Anton (Repensando a Idade Média)


BIBLIOGRAFIA:

Brown University - Italian Studies Department (2010). The Decameron Web. https://www.brown.edu/.../dweb/texts/DecShowText.php...


Duarte, L. M. (1992). “A Boca do Diabo - A blasfémia e o direito penal português da Baixa Idade Média. Em Lusitania Sacra, 4 (2ª série). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, pp. 61-82


Edwards, J. (1988). “Religious Faith and Doubt in Late Medieval Spain: Soria circa 1450-1550”. Em Past & Present, 120. Oxford: Oxford University Press, pp. 3-25


Freitas, D., Heitor, I., Maia, A., Marques, J. e Ventura, L. Ordenações Afonsinas [Em linha]. Coimbra: Universidade de Coimbra. Disponível em http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/

[edição fac-similada de Almeida, M. e Martins, J. (1792). Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V. Ordenações Afonsinas. Coimbra: Real Imprensa da Universidade]

Ladurie, E. (2005). Montaillou. London: Folio Society


Oliveira Marques, A. (2010). A Sociedade Medieval Portuguesa – Aspectos do Quotidiano. Lisboa: Esfera dos Livros


Keller, A. (ed.) (1842). Gesta Romanorum, Erster Band. Stuttgart und Tübingen: J. G. Gottsascher Verlag


Williams, H. (2009). “Composing the mind: doubt and divine inspiration in Otloh of St Emmeram’s Book of Temptations”. Em European Review of History-Revue européenne d’histoire,

16 (6). London: Routledge, pp. 855–873

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