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Recrutamento e composição dos Exércitos Medievais

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    InfoBlog de JD
  • 3 de jul. de 2019
  • 8 min de leitura

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Batalha no século XII

Recrutamento e composição dos Exércitos Medievais: As hostes senhoriais, as

milícias urbanas, os mercenários e os sistemas mistos.


O modelo funcional tripartido e hierarquizado tradicionalmente aceite em que assentava a sociedade medieval: "oratores" (os que oram), "belatores" (os que lutam) e "laboratores" (os que trabalham), deixava à nobreza, a natural detentora do poder armado, a responsabilidade de pegar em armas e lutar. Pesadamente armados, montados em robustos cavalos e bem adestrados quer no manejo das armas quer nas tácticas de combate, estes contingentes tornaram-se, ao longo dos séculos XI a XIII, imprescindíveis no campo de batalha.

No entanto, como em tudo o que já aqui se mostrou acerca do Medievo, também na questão da composição dos exércitos régios a realidade não era bem o que parecia, a sua estrutura, organização e recrutamento foi evoluindo com o tempo e diferia de reino para reino e de região para região, mediante a estrutura social estava mais alicerçada nas cidades e vilas ou no mundo rural.


Ilustração de uma batalha na 1ª metado do século XIII

O recrutamento típico deste período baseado nas relações feudo-vassálicas, que assentava na prestação de um serviço militar por parte do feudatário em troca de terras ou títulos apresentava-se cada vez mais desadequado às crescentes exigências militares das monarquias dos séculos XII e XIII. O tempo de serviço, que estava estipulado entre 40 a 60 dias em Inglaterra e que nem chegava a 40 dias em França eram dos problemas mais graves que se colocavam na altura de levantar um exército, inclusive muitos vassalos recusavam-se a servir em armas o seu senhor, considerando os benefícios recebidos mais como recompensas por serviços passados do que como contrapartidas para serviços futuros, situação que no dizer do historiador francês Philippe Contamine provocou "uma clara desmilitarização dos feudos".


Ilustração das 'Cantigas de Santa Maria', século XIII.

Os Estados procuraram reagir a este problema substituindo o modelo feudo-vassálico pela remuneração de forças recrutadas mediante disposições legais muito concretas. As vantagens deste novo modelo eram evidentes: aumento dos períodos de serviço militar, melhoria da qualidade dos contingentes, disciplina mais rígida, estruturas de comando mais permanentes e efectivas. A tudo isto juntava-se a preferência pelos salários pagos em dinheiro, consequência da crescente monetarização da economia europeia.


Lanceiros do século XI-XII

Em França ou nas cidades italianas ainda se assiste, até 1272, a algumas recuperações episódicas do "arriére-ban", o recrutamento geral de toda a população, que depois dessa data desapareceu completamente, sendo trocada pela remuneração de forças convocadas. Em Inglaterra, optou-se pelos "Identure Contracts": um sistema de contratos militares que à primeira vista pode parecer guardar pouquíssimas distinções de um sistema de mercenários, mas que na realidade conferia um aspecto já semi-profissionalizante no recrutamento da hoste, estipulando os termos de serviço como: o tempo prestado (geralmente 6 meses), a sua localização (onde seria feita a campanha) e a função militar exercida (arqueiro, homem-de-armas, "hobilar" ou "homines armati").

Já em França, o peso do recrutamento feudo-vassálico da nobreza, quer com contrapartidas em dinheiro, ou em terras, continuou a ser bastante importante na organização das hostes régias: estipula-se que ainda no século XIV de 15 a 25% desses exércitos fossem constituídos por cavaleiros pesados senhoriais, seus respectivos escudeiros, e pelos peões camponeses que trabalhavam nos seus domínios. Estava claramente à vista o teor mais feudal da organização militar francesa, sem no entanto menosprezar a utilidade que os combatentes pagos e recrutados nas vilas e cidades passou a ter na viragem do século XIII para o XIV, como o caso dos besteiros reais. Em contrapartida, estas percentagens eram um pouco menores em países que adoptaram apenas parcialmente o sistema feudal, como os principados Alemães, Aragão, Castela ou Portugal. Estes valores não são, contudo, estáticos e foram variando consoante o período a que nos reportamos.


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Temos de referir igualmente o exemplo peculiar, para o caso português, do pagamento de Contias: estas eram remunerações em dinheiro que o rei pagava directamente aos nobres, para que estes pudessem manter as suas hostes próprias em boas condições e bem equipadas para o caso de serem chamadas a integrar a hoste régia.


O valor das contias diferia em função da posição social de cada nobre e das suas posses, um fidalgo de menor riqueza tinha direito a uma contia mais elevada do que um grande senhor, segundo os registos, estas poderiam ir de um mínimo de 200 libras até a um máximo de 1.500. As contias serviam igualmente como um instrumento de controlo da Coroa sobre a nobreza, porque ao receberam tais pagamentos, os nobres teriam muito menos inclinação para se revoltarem e tomar armas contra o seu rei, criando uma clara situação de dependência. Muitos académicos associam este sistema à relativa paz social que se vivia no Portugal medievo, exceptuando as guerras civis de 1245-1248, 1319-1324 e 1355-1357.


Peões das milícias concelhias portuguesas em fins do século XIV. Recriação da batalha de Aljubarrota (2012).

AS MILÍCIAS URBANAS:

Com o crescimento urbano dos séculos XII a XIV, passou a ser aí que se organizavam, armavam e remuneravam os contingentes mais numerosos das hostes régias. Na década de 1190, a monarquia francesa, por exemplo, conseguia recrutar um contingente de 11.638 "sergentes" provenientes das comunas. Também as cidades da Flandres revelaram, nos inícios do século XIV uma grande capacidade de mobilização, como se verificou na Batalha de Courtrai (1302) em que o exército do Conde de Artois foi derrotado pelas milícias composta por 7.000 a 11.000 homens, na maioria apeados e oriundos das mais variadas vilas e cidades flamengas. Destas destacava-se Bruges que em 1340 conseguia, em caso de necessidade, recrutar perto de 8.000 homens de entre os seus 35.000 habitantes. Todavia, eram os contingentes oriundos das cidades-estado italianas que apresentavam números mais expressivos. Florença era capaz de arregimentar 3.000 a 5.000 combatentes da cidade mais 6.000 dos arredores em meados do século XIII, e durante a primeira metade do século XIV, conseguia, tal como Veneza, mobilizar entre cavaleiros e peões, cerca de 25.000 a 30.000 homens. No entanto, nas campanhas regulares o número que se conseguia reunir era na maior parte das vezes bem mais modestos.


O exemplo das milícias Suíças também não pode deixar de ser apresentado, foram dos guerreiros mais combativos do medievo e granjearam grande fama nos palcos de guerra europeus. Estas foram organizadas após 1291, com a chegada da Confederação Helvética, que mesmo fazendo nominalmente parte do Sacro Império, cada cantão tinha grande autonomia em relação ao mesmo. Cada um desses cantões treinava e armava as suas próprias milícias para lutar caso a Confederação entrasse em guerra. Essas milícias, que surgiram puramente pela necessidade de se defender de ameaças externas sem contar com os recursos para mercenários melhor equipados, foram as precursoras dos futuramente famigerados piqueiros.

Tal era a destreza destas forças que Maquiavel foi quem melhor os resumiu: "Os Suíços são armatissimi e liberissimi".


Uma 'Lança'. Composta pelo cavaleiro, o seu escudeiro, um alabardeiro, um arqueiro e um arcabuzeiro. Ultimo quarto do século XIV.

AS MILÍCIAS CONCELHIAS PORTUGUESAS:

Esta era uma dinâmica a que os reinos cristãos da Península Ibérica também não foram alheios. O papel das milícias urbanas portuguesas, leonesas, castelhanas e aragonesas são reconhecidas como cruciais para o sucesso da Reconquista. Estes habitantes (vizinhos) dos Concelhos integravam as hostes régias de forma autónoma, e correspondiam a uma necessidade sentida pelas próprias populações, sobretudo na fronteira, de encontrar maneiras eficazes de por um lado se defenderem dos ataques constantes e por outro, de obter saques ou outras fontes de rendimento.


O recrutamento Concelhio passou a ser bastante regulamentado quando, a partir de meados do século XIII, os reis Afonso III e D.Dinis estruturaram a sua organização que comportava essencialmente três modalidades:

- Os Cavaleiros-vilãos (ou "aquantiados", desde o século XIV), pequenos proprietários livres ou guerreiros de baixa nobreza, que, por possuírem bens suficientes para adquirir um cavalo (ou certas armas), prestavam serviço militar ao rei em troca de pagamento em dinheiro e gozando de uma série de privilégios fiscais.

- Os Besteiros do Conto, que eram mesteirais exercitados na arte do tiro com besta, recrutados nos concelhos em quantidades pré-estabelecidas nos cadernos de arrolamento (que entre outras disposições, estipulavam o número obrigatório de dias anuais para treino militar), e que por servirem o rei na guerra, gozavam, também eles, de diversas regalias.

- Os Peões, "homens-de-pé" ou simplesmente a "peonagem", geralmente camponeses do termo rural dos Concelhos, que estavam igualmente registados em livros de arrolamento e a quem as Cartas de Foral do seu Concelho especificavam os tempos de serviço e "soldos" como pagamento.


Arrolamento de besteiros nas comarcas de Guimarães e Viseu, na chancelaria régia de D.Fernando (1368). Na preparação para a 1ª guerra Fernandina o monarca ordenou a contagem dos besteiros no reino, números que andariam por volta dos 5000 efectivos.


A todos estes combatentes poderiam depois acrescentar-se cavaleiros, escudeiros e peões das Ordens Militares, ou os dos contingentes de mercenários estrangeiros contratados, ou ainda alguns criminosos a quem a Coroa prometia perdoar. Ao todo, em finais do século XIV e inícios do século XV, as maiores hostes régias portuguesas devem ter reunido um total entre os 10.000 a 15.000 efectivos.


Besteiros do Conto. Esta força semi-profissional estava sob alçada exclusiva do rei, apenas podiam ser convocados por ele e era o monarca que autorizava quantos seriam necessários por Concelho ou comarca. Foram criados em fins da década de 1280 por D.Dinis, sem dúvida influenciado pelos besteiros reais franceses, criados uns anos antes por Luís IX.

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CONDOTTIERE E MERCENÁRIOS:


Em Itália, os conflitos entre cidades-estado levou ao surgimento de tropas mercenárias chefiadas por "Condottieri", que negociavam contratos ("condottas") com os senhores locais ou com o patriciado urbano que estabelecia os termos do serviço militar: a duração da campanha, a quantidade de efectivos da hoste e o valor dos pagamentos. Pensou-se que as leis restritivas de porte de arma sobre os habitantes das cidades pudesse ter sido a razão principal para as autoridades urbanas terem recorrido a estas forças mercenárias, mas mais provavelmente tal uso se deve ter ficado a dever a razões estritamente económicas: estes verdadeiros profissionais eram homens já experimentados na arte da guerra a quem as cidades não necessitariam de organizar o recrutamento nem de dar formação militar. Os Condotieros conheciam também os antigos tratados romanos de guerra que podiam utilizar no campo de batalha de forma ardilosa, evitando assim confrontos campais de resultado mais que duvidosos. Mas não foi apenas em Itália que o recrutamento de mercenários se tornou cada vez mais comum, especialmente a partir do século XIV, quando as necessidades de guerra foram evoluindo para um estilo muito mais profissional que já não podia ser apenas colmatado com as hostes senhoriais ou as milícias urbanas locais. Durante a Guerra dos Cem Anos as "Companhias Brancas" do futuro Condestável francês Bertrand du Guesclin eram essencialmente constituídas por mercenários que praticavam um novo estilo de guerra bastante violento para os camponeses: a "chevauchee", ataques rápidos destinados à pilhagem e destruição dos campos agrícolas, aldeias ou vilas e o massacre das populações locais de maneira a reduzir a produtividade de uma região e espalhar o terror psicológico. Estes métodos foram amplamente usados em França e na Península Ibérica onde as "Companhias Brancas" espalharam o caos durante a guerra civil castelhana entre Pedro e Henrique ou nas guerras Fernandinas entre Portugal e Castela (1369-1382).


CONCLUSÕES:


Sem querer compartimentar um tipo específico de hoste a cada região ou reino, por todas as nuances atrás descritas, podemos de qualquer forma agrupar os exércitos medievais em hostes de cunho mais feudal como em França ou Castela, mais baseados em milícias urbanas ou mercenários como em Itália, Flandres e Suíça, ou em sistemas mistos de recrutamento senhorial e milícias urbanas semi-profissionais como em Portugal, Aragão e Inglaterra. De ressalvar contudo que a evolução dos tipos de recrutamento seguiu um caminho mais ou menos similar um pouco por toda a Europa onde podemos constatar a presença destas diversas forças, apenas diferindo o peso ou a percentagem com que cada uma contribuía para o grosso final de cada exército.


- Pedro Alves.


Linha de arqueiros. Século XIV.


FONTES BIBLIOGRÁFICAS:


Contamine, Philippe. War in the Middle Ages. Oxford: Basil Blackwell, 1984.


SERGIO BOFFA. Warfare in Medieval Brabant 1356–1406. (Warfare in History.) Rochester, N.Y.: Boydell. 2004. Pp. xvi, 289


A Arte da Guerra em Portugal 1245-1367. Miguel Gomes Martins. Imprensa da Universidade de Coimbra.


Guerra e Poder na Europa Medieval, das Cruzadas à Guerra dos Cem Anos. João Gouveia Monteiro, Miguel Gomes Martins, Paulo Jorge Agostinho. Imprensa da Universidade de Coimbra.


Gillingham, John (1992), «William the Bastard at War», in: Strickland, Matthew, Anglo-Norman Warfare: Studies in Late Anglo-Saxon and Anglo-Norman Military Organization and Warfare, ISBN 0-85115-327-5, Woodbridge: The Boydell Press, pp. 143–160.



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