Práticas Médicas Medievais - Doença de Corpo e Doença de Alma
- InfoBlog de JD
- 1 de jun. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de out. de 2021
Um artigo original de 'Repensando a Idade Média':

Durante o período medieval, principalmente entre os séculos IV e XIV, a concepção de mundo europeia era definida pelo cristianismo. Dessa forma, alguns dos males que acometiam as pessoas poderiam não ser interpretadas como um mal do corpo, mas sim como um mal de espírito. Isso não quer dizer, no entanto, que os medievais acreditavam que as doenças eram necessariamente causadas por demônios, mas sim que a causalidade natural de doenças convivia com a causalidade espiritual. Como a medicina não tinha o mesmo tratamento atual, as doenças não eram vistas como patógenos que pudessem ser identificados e erradicados, mas sim através de explicações que eram cabíveis à sua época e mentalidade. O corpo, portanto, se tornava o cenário do conflito cristão entre o bem e o mal, e tais enfermidades eram tratadas como se tivessem sido causadas, ou permitidas, por fatores espirituais, que envolvem Deus e Satanás, ou até mesmo envolvendo fatores humanos, como bruxas.

Esse processo de interpretação, no entanto, não era exclusivo da cosmovisão cristã. Muitas das concepções de medicina que os clérigos dominavam eram, de fato, reproduções e reinterpretações dos mesmos métodos postulados pelos antigos gregos. Enquanto isso, ao mesmo tempo, a igreja se esforçava para combater ou assimilar outras concepções de doença e cura que estavam entranhados nos costumes locais, herança do paganismo que eles visavam converter. Neste ínterim, a medicina na idade média estava centrada em três figuras: o medicus, que era dotado dos saberes naturais e do conhecimento dos antigos, mas esse termo começou a cair em desuso a partir do século XII, quando o termo physicus começou a ser utilizado para substituí-lo; o sanctus ou presbyter, que possuía o dom sobrenatural da cura; e o maleficus, que também detinha poderes sobrenaturais, mas eles não advinham de Deus e eram utilizados para afligir doenças, ao invés de curá-las.

Na idade média, as doenças não eram fenômenos individuais, mas também possuíam características sociais. A doença não era tratada de forma individual, mas carregava um simbolismo que afetava todos aqueles ao redor do doente. O corpo do doente era visto como um corpo possuído. Pelo uso do vocabulário, percebe-se que a possessão pela doença era vista como uma invasão literal, geralmente por demônios, com uma metáfora comum sendo aquela de uma tomada de cidade sitiada. Acompanhado disso, os sintomas que a doença causa eram vistas da mesma forma que um carrasco ou torturador, caracterizando os males causados por ela como uma opressão infligida ao corpo. Uma das principais características sociais da doença, no entanto, era o impacto causado pela invalidez ao trabalho. Como o doente não consegue trabalhar para o seu sustento, a ele resta a mendicância. Dessa forma, o doente acaba encorporando o conceito de pauper, o pobre que sofre como Cristo e vive de caridade, dando para a comunidade a oportunidade da salvação através do exercício da caridade.

Como os métodos medicinais antigos conviviam com a cosmovisão cristã para as doenças, existiam duas formas de se diagnosticar e de se curar uma doença. A primeira seria através do papel do medicus, que seguindo as instruções deixadas pelos teóricos da antiguidade, desenvolveriam um remédio específico que deveria curar a aflição do doente. A outra forma seria através do papel do sanctus/presbyter, que era um membro do clero responsável por administrar milagres. No entanto, o milagre não ocorreria diretamente através dele, mas seria necessário a intervenção de um santo para a cura daquela doença. Ao se apropriarem da tipologia de doenças da antiguidade, cada santo seria responsável por curar uma doença diferente, e dependendo dessa doença, as orações e ofertas seriam direcionadas a um santo específico. Seguindo essa mesma tipologia adaptada, as doenças passaram a seguir uma hierarquia, com o elemento mais baixo sendo "febres", seguidos de outros males considerados piores, como cegueira, paralisia, epilepsia, frenesi e possessão.
Destacada das demais estava a lepra, que possuía sua própria conotação singular, com o leproso sendo responsável pela expiação dos pecados da carne cometidos pelos seus pais. Além disso, o corpo do leproso carregava a mesma corrupção e decadência apresentada pelo corpo dos mortos, o que fazia com que eles fossem rejeitados pela sociedade, com exceção dos clérigos que, ao demonstrarem o amor divino, realizavam o ato de beijar o leproso, quando na época acreditava-se ser contagiosa.

Existiam duas grandes correntes de interpretação de doenças na Idade Média. Uma delas dizia respeito à interpretação cristã de Hipócrates e de alguns teóricos árabes, que seguia a teoria dos quatro humores, ou ainda a leitura de Galeno e sua teoria dos quatro temperamentos. A adaptação dessas teorias para um viés cristão se deu através de, principalmente, Isidoro de Sevilha e Hildegard de Bingen, ainda que com algumas variações. Hildegard de Bingen, particularmente, acreidtava que as doenças eram causadas por um desequilíbrio cósmico que afetava os quatro humores do ser humano. Portanto, as doenças eram causadas ou por um alinhamento nefasto dos planetas, ou pela umidade ou calor excessivo causado pela mudança de estações, de uma forma que os humores e temperamentos fiquem desequilibrados, deixando o corpo fraco e, portanto, doente. Para Isidoro de Sevilha, esse desequilíbrio era causado por conta da queda do homem e do pecado original, e que a única maneira de não ficar doente seria esperar pela ressurreição de Cristo e a redenção de todos os pecados. A interpretação puramente religiosa trata as doenças como signos. Ou seja, como uma relação de causa e consequência com o pecado. Dessa forma, as doenças foram permitidas por Deus por um desses dois motivos: como um castigo divino pelo pecado, ou como uma provação divina comparável a aquela feita com Jó, nesse caso ganhando uma característica de virtude. No entanto, doenças não eram somente causadas por Deus, mas a intencionalidade humana também poderia estar envolvida na forma de feitiços. Um dos expoentes dessa interpretação foi Raban Maur, que classificou as doenças de acordo com o pecado gerador delas.

Para cuidar das doenças, existiam três tipos de recursos: a proteção, o tratamento e a cura. A proteção consistia simplesmente em cuidar da saúde do corpo e da alma, se alimentando bem, realizando a sangria com a devida frequência, e indo regularmente à igreja para orar e pedir proteção contra todos os males, além de andar sempre com amuletos correspondentes aos santos. O tratamento consistia em três práticas distintas: a dieta, a farmacopeia, e a cirurgia. Por se tratar do manuseio do corpo doente para se extirpar o mal, a cirurgia geralmente não era feita por clérigos, principalmente após as reformas gregorianas. A cura era a solução definitiva para os males, e era oferecida somente pela igreja. Como corpo e espírito trabalhavam em uníssono, a doença do corpo era considerada um reflexo da alma da pessoa, e a cura trabalhava tanto o corpo quanto o espírito. Um dos tipos de cura era o batismo, que como um sacramento, deveria oferecer livramento ao corpo e espírito da pessoa ao juntar ela com Cristo, e geralmente ele era acompanhado da confissão dos pecados, que era tido como o "remédio da alma". A extrema-unção, como um sacramento, também visava a cura da doença da alma na pessoa moribunda, de forma que sua alma pudesse ser salva antes do seu corpo perecer. Outro tipo de cura era o milagre, que era uma intervenção de cura feita por santos, geralmente já mortos. O milagre funcionava de forma a transferir a santidade do corpo do santo para combater a corrupção no corpo doente do vivo. Existiam duas formas de se apelar ao milagre, uma delas à distância, evocando a presença espiritual do santo, feita principalmente pela aristocracia. E a peregrinação para o toque no corpo ou em outras relíquias do santo, feita principalmente pelas camadas mais populares.
Como os estilos de medicina conviviam entre si, um doente que foi desenganado pelo médico local poderia apelar ao padre para uma cura mais profunda. Ou, em outros casos, o próprio médico poderia apelar para milagres de santos, chegando até mesmo a recomendar peregrinações como uma solução possível para a doença. O papel do médico e do padre começou a se separar gradativamente a partir das reformas gregorianas, que buscou definir, entre outras coisas, os papéis de clérigos e leigos, deixando a medicina ao encargo dos leigos. Ainda assim, houve uma inflação do saber médico principalmente entre os séculos XI e XIII, com a tradução de escritos árabes sobre medicina e até mesmo a tradução de Aristóteles do árabe para o latim, culminando na criação da Faculdade de Medicina de Montpellier, em 1289. A partir de teóricos como Henry de Mondeville e Guy de Chauliac, no século XIV, o saber médico começou a se distanciar do saber religioso, com o surgimento do ofício de cirurgião.

Foram os cirurgiões que pavimentaram o caminho para uma medicina experimental na idade média, indo de oposição às práticas dos médicos e dos clérigos. A oposição era tamanha que alguns dos cirurgiões eram acusados de heresia, no caso, de seguirem a doutrina da "dupla verdade" de Averróis, e também por se aproveitarem de conhecimentos pagãos que médicos e clérigos rejeitavam. Isso, no entanto, não significa que eles eram contra a igreja ou a religião, já que boa parte do seu discurso, ainda que fomentasse oposição a uma ou outra doutrina da igreja, nunca se separou do cristianismo. O rompimento total entre a cosmovisão cristã medieval e a prática médica só ocorreu, no fim das contas, no século XIX, marcando uma prática médica completamente separada do pensamento religioso.
Fonte: Schmitt, Jean-Claude (2018). "O Corpo, Os Ritos, Os Sonhos, O Tempo. Ensaios De Antropologia Medieval". Editora Vozes, Rio de Janeiro.
Texto de Daniel Pradera
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