top of page
  • Foto do escritorInfoBlog de JD

Os primórdios da Marinha Portuguesa: da Alta Idade Média, a Fuas Roupinho

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média':


Gostaríamos de deixar o nosso agradecimento ao Professor Miguel Gomes Martins pelas nossas discussões acerca do Fuas Roupinho e dos começos da marinha portuguesa no último ano, com os nossos entendimentos e desacordos pontuais, sem o qual este artigo jamais seria possível na forma em que se apresenta. (Claro, todos os eventuais erros factuais e/ou interpretativos são responsabilidade meramente nossa)

Normalmente, Portugal é visto e apresenta-se como país de tradição marítima, mas nem sempre foi assim. Para se lançar pelo mar à procura de novos mundos, o mar teve de deixar de ser visto como uma fronteira ou como algo traiçoeiro, mas também como via de passagem e oportunidades. Novas técnicas navais tiveram de ser (re)descobertas, o comércio naval e o povoamento costeiro estimulados, uma frota de guerra criada, etc. Obviamente, por razões de espaço, não queremos fazer neste momento uma espécie de síntese dos antecedentes medievais dos Descobrimentos e do papel dos monarcas da dinastia de Borgonha nos primeiros passos de uma “atlantização” do reino que só daria frutos em finais da Idade Média e durante a Idade Moderna. Mesmo assim, com a devida consciência de este ser um tema necessariamente polémico e ainda a sofrer uma lenta alteração de paradigmas, decidimos escrever sobre os antecedentes alto-medievais e surgimento da marinha de guerra portuguesa ao longo do século XII.


Representação de navios em Classe, o porto romano de Ravenna, num mosaico da Basílica de Sant'Apollinare Nuovo (século VI).

Suposta representação de navios romanos orientais com a tipologia de um "dromon" sem mastro, do Skylitzes de Madrid. Contudo, este manuscrito foi produzido na Sicília normanda (século XII) e reflecte melhor as condições das galés da armada de Rogério II da Sicília.

Após o colapso da autoridade romana sobre as províncias ocidentais do Império no século V, praticamente nenhum dos reinos que emergiram manteve alguma marinha profissional tal como Roma possuía e ainda continuaria a possuir por longos séculos no Oriente. Isto não quer dizer que não se arranjassem barcos, mas eram sobretudo navios mercantes ou os improvisados navios de fogo, como os usados por Gaiserico em 468 contra a frota romana do futuro imperador Basilisco, num dos maiores fiascos navais de Roma. Mesmo assim, ainda conhecemos o uso ocasional de forças navais por alguns reinos “germânicos” na Antiguidade Tardia, como a frota goda usada pelo rei Theudis para assaltar sem sucesso Ceuta, pouco após ter sido reconquistada pelas forças de Belisário em 534, ou os navios que transportaram uma força expedicionária do rei Gunthram da Borgonha para a Galécia em 585, de modo a salvar o reino suevo da anexação por Leovigildo. E mesmo as frotas romanas continuariam activas por uns tempos, como provam a provável embaixada de Justiniano I ao reino suevo na qual foi S. Martinho de Braga integrado ou ainda os ataques romanos ao reino godo em finais do século VII a partir da base naval de Ceuta.


Representação do Navio de Oseberg, uma embarcação viquingue recuperada em 1903 de um enterro. Está agora no Museu dos Barcos Viquingues, em Oslo.

Representação de um navio islâmico de Mértola (século XII), com vela quadrada, 9 fileiras de remadores e 2 remos na popa.

Alcácer do Sal, refundada como Qasr Abu Danis no século IX, foi, tirando o período cristão entre 1160 e 1191, a base naval islâmica mais importante no espaço português até inícios do século XIII e um centro importante da pirataria feita contra o Noroeste Peninsular.

Contudo, nos séculos VIII-XI, o silêncio das fontes é quase total sobre a actividade naval dos reinos cristãos do Norte. Por um lado, são conhecidos contactos navais constantes entre o reino das Astúrias e o Império Carolíngio, com as concomitantes influências culturais e artísticas há muito detectadas na arte asturiana; por outro, estes intercâmbios processavam-se principalmente na costa cantábrica e nada indica nenhuma função militar. No Noroeste Peninsular, as informações são ainda mais escassas. Conhecemos comunidades costeiras como as das famosas póvoas marítimas estudadas por Alberto Sampaio, mas a imagem prevalecente das fontes alto-medievais é a de um mar perigoso, aliando-se às intempéries típicas do oceano os ocasionais mas altamente devastadores ataques viquingues e normandos ou as mais frequentes razias muçulmanas, também frequentemente realizadas por mar e que atingiam regularmente as costas nortenhas entre meados de Abril e meados de Novembro, desde o século IX até ao XII. Só para dar alguns exemplos altamente significativos, vejam-se as expedições muçulmanas de 841 e 879 ou, até pelo facto de ser tardio, o saque da cidade do Porto e da sua catedral pré-românica em 1140 com total impunidade por forças almorávidas, narrado na boca do bispo portuense Pedro Pitões na “De Expugnatio Lyxbonensi”. Só com a conquista de Lisboa, e mais tarde Alcácer do Sal, devido ao recuo das bases navais islâmicas, é que as costas nortenhas puderam começar a respirar em paz, embora a pirataria tenha sido um problema ao longo de toda a Idade Média, especialmente para as costas a Sul. Por isso, e por mais que isto seja uma caricatura de uma realidade mais complexa, não é de estranhar que a maioria das comunidades estivesse seguramente longe do mar, pelo menos durante a época de campanha, e mesmo a maioria das gentes costeiras não fizesse mais do que navegação de cabotagem, sem navios muito maiores do que meras barcas nem capacidade de construção naval… Mesmo assim, talvez seja demasiado inocente ver os cristãos do Norte como espectadores meramente passivos neste teatro de guerra. Sabemos por indícios mais tardios que certas comunidades costeiras também realizavam fossados por mar. Por exemplo, o foral da Ericeira (1229) isentava os vizinhos de fazerem fossado por terra ou por mar. Tais expedições seriam bem semelhantes aos fossados por terra, sendo integradas por peões e cavaleiros-vilãos, em barcos de pequeno porte e sem especialização militar, com o objectivo de devastar e saquear o máximo possível as costas do inimigo como forma de rendimento dessas populações. Por analogia com os fossados terrestres, que sabemos terem origem nas condições das comunidades fronteiriças alto-medievais, talvez possam ainda remontar à Alta Idade Média, embora isto não seja mais do que a nossa hipótese.


Representação da Pena Ventosa tardo-medieval, na Casa do Infante (Porto). Era dentro da dita "Muralha Romana" que o Porto ficava durante a Alta Idade Média e foi esse o espaço afectado pelo ataque muçulmano de 1140 mencionado pelo cruzado Raul, no seu relato do discurso do bispo Pedro Pitões. Nota também para o facto de a catedral da maquete ser já a actual, pois a velha pré-românica foi demolida para dar lugar à existente depois de 1147.

Com a prosperidade económica e florescimento comercial da Cristandade Latina nos séculos XI-XIII, a atitude face ao mar lentamente mudou na Península Ibérica, especialmente num espaço como o Noroeste Peninsular, que se abria ao comércio marítimo numa maior escala e, no caso de Compostela, a receber peregrinos do Norte da Europa. A guerra no mar reflectiu esta evolução e a primeira armada de guerra cristã na Idade Média Peninsular surgiu por volta de 1115 pelas mãos de Diogo Gelmires, o primeiro arcebispo compostelano. Para combater a pirataria, que até podia ser praticada por cruzados como o rei Sigurd da Noruega, não só construiu ou reparou torres e outras fortificações como as famosas Torres do Oeste, mas também criou uma frota de guerra pessoal. De acordo com a “Historia Compostellana” (HC), contratou os serviços dos melhores construtores de navios na Cristandade Latina: os italianos e os provençais. Com o estaleiro em Iria, um genovês chamado Augério construiu duas galés e um pisano chamado Fuxoni outra, uma década depois. Com base nessas 3 galés, Diogo Gelmires não só conseguiu assegurar a defesa da Galiza contra piratas ingleses e sarracenos vindos de Sevilha e Lisboa, como também ordenou ataques contra o al-Andalus altamente bem sucedidos, segundo a HC. Também pouco depois temos notícias do uso de barcos dos portos cantábricos no cerco de Bayonne por Afonso I, o Batalhador, rei de Aragão e Navarra, mas este episódio é isolado e não estamos aqui perante marinheiros minimamente profissionais, mas sim uma força naval “ad hoc” usada para bloquear o porto da cidade. Igualmente, para a monarquia castelhano-leonesa, não temos quaisquer indícios de uma marinha de guerra até meados do século XIII, apesar de algumas iniciativas nesse sentido por Afonso VIII em finais do século XII. Aliás, é sintomático que a presença de qualquer força naval castelhana no cerco de Afonso VII a Almería (1147) seja altamente duvidosa, por contraste com a bem conhecida acção dos genoveses ou até com a força naval de Afonso Henriques no cerco de Lisboa. Por fim, também os catalães só se lançariam plenamente no mar em inícios do século XIII…


Este cenário no espaço ibérico, onde apesar de alguma evolução só a marinha privada de Compostela brilhava, far-nos-ia naturalmente duvidar de qualquer marinha de guerra portucalense, contudo há indícios de que esta estivesse possivelmente em formação. Já no reinado da rainha Teresa, tentou-se conter a invasão do Condado Portucalense em 1120 pela sua irmã, a rainha Urraca de Leão e Castela, com carinas colocadas no rio Minho de modo a proteger a passagem por uma ilha estratégica cuja localização não é conhecida. Infelizmente para a monarca portucalense, a tentativa correu mal. As forças leonesas conquistaram a mencionada ilha e atravessaram o Minho, tendo D. Teresa acabado cercada no castelo de Lanhoso, onde assinaria um tratado humilhante com a irmã. Ainda antes da sua rendição, D. Teresa ofereceu os seus navios a Diogo Gelmires para que este escapasse das mãos da rainha Urraca e chegasse são e salvo a Compostela, antes da sua rendição. O arcebispo não aceitou e acabou preso pela rainha leonesa, mas o que mais interessa para a nossa história é o facto de a HC mostrar como Teresa tinha navios prontos para fazerem viagens marítimas com alguma envergadura e talvez as carinas colocadas no rio Minho, erroneamente traduzidas como “barcas” por Herculano e Emma Falque, fossem já efectivos navios de guerra, pois o termo “carina” aqui significa meramente um navio de forma genérica, embora algumas fontes usem o termo para navios capazes de navegar no mar. Infelizmente, não podemos dizer mais neste momento sobre a tipologia destas embarcações, a sua capacidade bélica ou profissionalização pelas limitações da nossa fonte: obviamente, os cronistas de Compostela não estariam interessados em contar as iniciativas navais do Condado Portucalense nem em narrar feitos de guerra a não ser que fossem significativos para os seus propósitos propagandísticos.

Se para D. Teresa os indícios ainda são tíbios, para Afonso Henriques os indícios são bem mais sólidos, ainda que escassos e fragmentários. Antes de irmos para o Fuas Roupinho e a guerra luso-almóada de 1178-1191, gostaríamos de falar de alguns episódios anteriores e a partir daí talvez elucidar algo sobre a formação da primeira armada lusitana. No cerco de Lisboa pelo rei português e pelos cruzados em 1147, sabemos pelo cruzado Raul que estava lá um “rector de galleata regis”, i.e., um comandante das galés do rei, morto quando defendia a torre de assalto anglo-normanda que levou à rendição da cidade durante a noite de 20 para 21 de Outubro de 1147. Ou seja, Afonso Henriques já dispunha em 1147 de navios de combate ao estilo mediterrânico muito dificilmente arranjados por requisição civil, ainda que provavelmente fosse provavelmente pequena em números e complementada em algumas operações por outros navios dos vizinhos de concelhos costeiros, para fossados mais modestos. Quer fosse herança da mãe ou formada algures entre 1128 e 1147, a base desta armada mais provável era a foz do Mondego, por falta de técnicas navais apropriadas a Norte. É certo que ainda não existia nenhuma Figueira da Foz, mas outras povoações da zona como Buarcos e Montemor-o-Velho tinham já uma extensa tradição mediterrânica: é curioso como, ainda hoje, as tradições de barcas mediterrânicas, com técnicas herdadas dos fenícios, romanos e muçulmanos se extendam precisamente até à foz do Mondego. Ou seja, aqui havia as técnicas, comunidades e meios necessários para armar a frota régia, quiçá com colaboração de muçulmanos ou até de italianos (aqui já entramos no domínio da especulação). E a estratégia naval por trás dessa frota, em conjunto com a necessidade de coordenação com os cruzados, pode bem ter sido a razão para Afonso Henriques ter optado por um desvio pela Serra de Sintra até ao Cabo da Roca e Cascais, que era importante como um porto para os cruzados poderem atracar antes de se arriscarem a entrar no Tejo. Também é possível que esses navios tenham prestado auxílio logístico e até militar, até pela presença do comandante na defesa de uma torre de assalto, mas as nossas fontes cruzadas omitem qualquer participação, até de modo a menorizar o contributo português e exaltar o esforço cruzado.


Representação do cerco de Lisboa de 1147, na "Crónica de Dom Afonso Henriques", de Duarte Galvão (c. 1500-1510).

Foral de Lisboa conferido por Afonso Henriques em 1179, conhecido pela confirmação de Afonso II, em 1214. A cláusula sobre os oficiais marítimos e petintais do rei está no fim do documento, imediatamente antes da roboração régia afonsina e das testemunhas. Agora, este documento está presente no Arquivo Municipal de Lisboa, a quem pertence esta reprodução.

De qualquer modo, com a conquista de Lisboa, esta incipiente armada portuguesa ganhou uma base naval importantíssima e gente com capacidades de navegação a roçar o lendário (como na famosa lenda dos navegadores de Lisboa relatada por al-Idrisi), o que é uma situação reflectida no foral de 1179. Neste documento régio, era codificado que os alcaides dos navios, os espadeleiros, os proeiros e os petintais (carpinteiros ou calafates, por exemplo) tinham o estatuto de cavaleiros-vilãos, o que ainda é mais notável tendo em conta a equiparação jurídica destes cavaleiros de Lisboa aos infanções! Decerto, o objectivo de tal norma do foro lisboeta seria passar a escrito uma determinação régia paraa tornar a liderança e certos trabalhos com mão-de-obra escassa mais apelativos. Esta referência também atesta a existência de um comando operacional especializado (por mais que ainda longe do tardo-medieval), que como veremos a seguir era capaz de fazer um combate naval relativamente sofisticado contra outras marinhas reconhecidamente “profissionais”. Também parece-nos óbvio que a projecção naval de Portugal cresceu ao longo do reinado de Afonso I. A corroborar esta informação está o relato de ibn Idari, quando afirma que Geraldo Sem Pavor fora executado por ordens do califa almóada por conspirar com Afonso Henriques uma invasão cristã de Marrocos. Quer seja realidade ou fantasia, o que conta aqui é a capacidade de projecção naval portuguesa, perfeitamente capaz de assustar o califa Abu Yaqub Yusuf (r. 1163-1184) ou pelo menos de permitir a ibn Idari uma desculpa minimamente credível para justificar a morte do caudilho.

Com o carácter desta incipiente marinha de guerra abordado, passemos ao “nosso amigo” Fuas Roupinho e às suas supostas acções militares. Quanto ao homem em si, é bem possível que alguém com esse nome tenha existido, mas momentaneamente vive no puro mundo da lenda. Só a “Crónica de Portugal de 1419”, da provável lavra de Fernão Lopes e certamente com base em fontes mais antigas desconhecidas, o refere e a famosa lenda da Nazaré não passa de um mito da historiografia de inícios do século XVII, tentando justificar historicamente o santuário e ligá-lo à monarquia portuguesa. O mesmo se passa com a documentação de Porto de Mós, onde não há provas nenhumas da sua presença como alcaide, referida na mencionada crónica. Luís Krus parecia ter resolvido o problema ao ter encontrado um Fernão Gonçalves Churrichão, o Farroupim, contudo este nobre galego viveu na segunda metade do século XIII, como documentos da catedral de Ourense de 1268 a 1271 comprovam.


Mapa das campanhas portuguesas e almóadas por mar e terra entre 1169 e 1189, retirado da biografia de Sancho I por Maria João Branco.

Assim sendo, por enquanto não há nada que corrobore a sua existência para além da crónica e o nome pode ser uma alcunha ou invenção mais tardia para um comandante real da armada profissional portuguesa em finais do século XII. Mesmo assim, um argumento de silêncio não é válido para se negar a historicidade desta personagem: nenhum comandante das galés ou almirante (título só criado em finais do século XIII nas monarquias do Ocidente Peninsular) é pessoalmente conhecido antes de uma primeira patrimonialização do cargo por Fernão Gonçalves Cogominho, já no cargo em 1314. Ou seja, só sabemos da existência dos cargos e não dos seus titulares. Fuas Roupinho poderia perfeitamente ser um caudilho como Geraldo Sem Pavor ou um nobre esquecido pelos nobiliários como tantos outros de baixa condição: pura e simplesmente não temos dados a esse nível.


Representação no Skylitzes de Madrid (século XII) do saque de Tessalónica pela frota abássida, liderada pelo traidor romano Leão de Tripoli, em 904. Os navios dão uma boa impressão de uma galé mediterrânica sem mastro do século XII, especialmente da frota siciliana de Rogério II.

O mesmo, felizmente, não se pode dizer da marinha portuguesa. Para o período da guerra luso-almóada entre 1178 e 1191, temos uma imagem fragmentária, mas muito mais viva do que o usual para o período anterior à institucionalização do Almirantado, graças não só a Fernão Lopes como também a ibn Idari. Os portugueses atacaram Sevilha, que pretendiam que caísse nas suas mãos não só por terra, com o brilhante fossado de Sancho I até ao arrabalde de Triana em 1178, como também por mar, possivelmente já sob a liderança de Fuas Roupinho (embora a “Crónica de Portugal de 1419” assevere que a nomeação tenha sido posterior). A este desafio português, responderam os almóadas com uma razia da sua frota profissional sobre Lisboa e os cristãos retaliaram com um ataque sobre Saltes. Talvez um ano seguinte, em Maio de 1180, os almóadas tentariam um novo ataque contra Portugal, atacando Porto de Mós, no que foram encurralados por Fuas Roupinho com a ajuda das forças concelhias de Alcanena e Santarém, mas a historicidade deste episódio é um pouco dúbia por causa da falta de confirmação de qualquer poder ou cargo de Fuas na região.


S. Vicente transportado sozinho e vigiado por 3 corvos a caminho de Lisboa, num manuscrito alcobacense do século XIII. Biblioteca Nacional de Portugal, Ms. Alcobacense 66, fol. 231v.

De qualquer maneira, em Junho ou Julho desse ano, estando Fuas seguramente no comando da armada portuguesa, e alegadamente em resposta a notícias de uma futura incursão portuguesa, pelo menos 9 galés (número um pouco suspeitosamente baixo da fonte árabe) foram ao encontro e travaram batalha no Cabo Espichel. Após um bombardeio com projécteis de longo e curto alcance, como era típico dos combates navais medievais, as duas marinhas aferroaram-se e os portugueses capturaram os barcos islâmicos assim como os seus líderes, numa forte derrota dos almóadas no mar. Como consequência do aparente fim da hegemonia muçulmana na actual costa Sul portuguesa, os lusitanos redobraram os seus ataques e em 1181 não só correram a fio de espada a costa do Algarve como fizeram mesmo um ataque a Ceuta não numa tentativa de pôr o pé em África mas mais provavelmente de varrer a frota almóada sedeada aí do mapa. Infelizmente para Fuas Roupinho, a capacidade naval almóada não parece ter sido completamente destruída e reuniram 54 galés para dar cabo do português. Os seus 40 barcos foram apanhados no Cabo de S. Vicente ou no Espichel (ou ainda no Estreito de Gibraltar?) e a brilhante campanha portuguesa acabou em desastre, com o comandante morto e 20 navios afundados.


Fim da História desta marinha cristã?

Nem por isso. Apesar de menos documentada, sabemos da sua sobrevivência a médio prazo porque em 1189 outros 40 navios acompanharam a Terceira Cruzada até Silves, e tudo aponta para a sua permanência a longo prazo ao longo do século XIII, mesmo com os registos esparsos que temos. As suas dimensões são misteriosas. Luís Miguel Duarte duvida por excesso dos números apresentados aqui, mas é bom lembrar que as Histórias militares medievais tendem a subestimar fortemente o número de navios em cada expedição: basta lembrar como se ridicularizava as fontes medievais que falavam em centenas de navios viquingues para depois os cépticos ficarem ridicularizados pelo estudo arqueológico dos barcos e acampamentos nórdicos. Igualmente, para o mundo mediterrânico do século XII, onde tanto os almóadas e os portugueses devem ser integrados nesta matéria, as forças navais aqui descritas pecam por pequenas: as armadas de Rogério II da Sicília, dos fatímidas/aiúbidas ou do imperador romano Manuel I Komnenos poderiam ser bem maiores e não temos bons mecanismos de crítica textual ou outra para averiguar estas dimensões. E repare-se no seguinte: uma armada de um reino alegadamente pobre e periférico com um núcleo forte de galés, os navios de guerra mediterrânicos por excelência, fora capaz de disputar taco a taco a hegemonia naval sobre o “Oceano Atlântico Muçulmano” com um poder naval mediterrânico: os almóadas. Isto nunca seria possível com navios mercantes fretados e comandados de forma amadora, como muitas vezes se pensa para o período anterior a 1317 e seria a regra durante a maior parte da Baixa Idade Média para França ou Inglaterra. Portanto, durante o século XII e por força da geografia, pelo menos Afonso Henriques teve de desenvolver uma marinha de guerra capaz de neutralizar a forte tradição marítima muçulmana e rapidamente o reino desenvolveu essa capacidade naval. Só fica por justificar o atraso das outras monarquias ibéricas a este nível. Talvez a causa para Leão e Castela esteja na falta de portos de tradição mediterrânica e/ou recursos disponíveis para gastar no mar, como Compostela tinha, enquanto a Coroa de Aragão só se virou definitivamente para o mar durante o reinado de Jaime I por razões já bem estudadas por autores como David Abulafia. Com tudo isto dito, é claro que a marinha de guerra foi reformada com os Pessanha em inícios do século XIV, mas já antes existia uma armada altamente capaz, com navios preparados e marinheiros minimamente treinados para o efeito, e, ainda por cima, muito mais bem sucedida nos séculos XII-XIII do que alguma vez foi durante o XIV, com ou sem os Pessanha…


Pormenor de um ícone do século XIV com uma galé ligeira, agora no Museu Bizantino e Cristão de Atenas. O estandarte é misterioso: talvez seja da República de Ragusa (Dubrovnik), que tinha um símbolo heráldico semelhante, mas não consegui encontrar nenhum paralelo iconográfico. De qualquer modo, fica um exemplo de uma galé baixo-medieval com a qual as embarcações portuguesas e almóadas se poderiam assemelhar.

A armada francesa a caminho da Cruzada da Berbéria (1390), num manuscrito das crónicas de Froissart hoje na British Library. Note-se ao centro uma nau e em baixo uma galé, talvez ainda resultado das políticas navais de Carlos V de França e da sua breve armada profissional. BL Harley 4379, f. 60v.


Fontes:

Barroca, Mário Jorge (2003). “Da Reconquista a D. Dinis”. In In Mattoso, José (ed.), “Nova História Militar de Portugal”, vol. I. Círculo de Leitores, p. 81.

Branco, Maria João (2005). “D. Sancho I. O Filho do Fundador”. Círculo de Leitores, pp. 88-92.

Borges, Marco Oliveira (2013). “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”. In “Revista da FLUP”, IV sér., vol. 3, Porto, pp. 123-144.

Calado, Adelino de Almeida (1998). “Crónica de Portugal de 1419. Edição crítica com Introdução e Notas de Adelino de Almeida Calado”. Universidade de Aveiro, pp. 46-49 e 76-79.

Collins, Roger (2004). “A History of Spain”, vol. II, “Visigothic Spain, 409-711”. Wiley-Blackwell, pp. 42 e 109.

Díaz, Manuel Flores (2015). “Castilla y el dominio del mar en la Edad Media (1248-1476)”. Tesis doctoral, Universidad de Valladolid, pp. 277-290.

Díaz, Pablo C. (2011). “El Reino Suevo (411-585)”. Ediciones Akal, S. A., Madrid, pp. 150-151 e 219-222. Donini, Guido; Ford, Jr, Gordon B. (1970). “Isidore of Seville’s History of the Goths, Vandals and Suebi”. E. J. Brill, Leiden, 2ª edição, p. 20.

Duarte, Luís Miguel (2003). “A Marinha de Guerra. A Pólvora. O Norte de África”. In Mattoso, José (ed.), “Nova História Militar de Portugal”, vol. I. Círculo de Leitores, Lisboa, pp. 292-299, 304-305, 314, 324-325 e 327-328.

Falque, Emma (1994). “Historia Compostellana”. Ediciones Akal, S.A., pp. 339-342 e 361-363.

Fletcher, Richard (1984). “Saint James’ Catapult: The Life and Times of Diego Gelmírez of Santiago de Compostela”. Oxford University Press, pp. 21-24 e 246-247.

Halsall, Guy (2007). “Barbarian Migrations and the End of the Roman West, 376-568”. Cambridge University Press, p. 273.

Herculano, Alexandre (1856-1977). “Portvgaliae monvmenta historica : a saeculo octavo post Christum usque ad quintumdecimum...”, “Leges et Consuetudines”, vol. I, f. III. Academia de Ciências de Lisboa, pp. 411-415.

Mattoso, José (1993). “História de Portugal”, vol. I, “Antes de Portugal”. Círculo de Leitores, Lisboa, p. 479.

Mattoso, José (2000). “Naquele Tempo. Ensaios de História Medieval”. Temas & Debates, pp. 213-255.

Mattoso, José (2015). “Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325”. Temas & Debates, p. 18.

Martins, Miguel Gomes (2017). “1147 – A Conquista de Lisboa na Rota da Segunda Cruzada”. Esfera dos Livros, pp. 167-170 e 276-277.

Penteado, Pedro (1998). “Estudos de História Religiosa”, vol. I, “O Santuário de Nossa Senhora de Nazaré”. Centro de Estudos de História Religiosa – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, pp. 22-28.

Pereira, Armando de Sousa (2008). “Geraldo Sem Pavor. Um guerreiro de fronteira entre cristãos e muçulmanos, c. 1162-1176”. Fronteira do Caos, Lisboa, pp. 71-72.

Silva, Tiago João Queimada e (2012). “Os feitos de D. Fuas Roupinho na Crónica de 1419”. In “Revista Portuguesa de História”, t. XLIII, pp. 91-104.

0 comentário

Commentaires


bottom of page