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OS MESTEIRAIS: TRABALHO E OFÍCIOS EM PORTUGAL NA IDADE MÉDIA

Um artigo original de Bruno Marconi, 'Repensando a Idade Média':


Texto inaugural da autoria do nosso mais recente colaborador e editor: Bruno Marconi, doutorado em História Medieval pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com obra publicada sobre os mesteirais de Lisboa na Idade Média, a quem a restante equipa deixa um caloroso agradecimento. Bem vindo ao "Repensando"!

OS MESTEIRAIS: TRABALHO E OFÍCIOS EM PORTUGAL NA IDADE MÉDIA.

O termo "mesteiral", apesar de não ser comum em nosso vocabulário do século XXI, é encontrado com frequência nas fontes medievais portuguesas. Sua definição, contudo, não é precisa: refere-se a um conjunto heterogêneo de atividades socioprofissionais, e possui diferentes acepções de acordo com o recorte temporal e espacial. A. H. de Oliveira Marques, em sua obra "A Sociedade Medieval Portuguesa", expressa que essa nomenclatura incluía trabalhadores de ofícios mecânicos da indústria, assim como alguns pequenos comerciantes e trabalhadores rurais como almoinheiros e pescadores. Mais recentemente, Arnaldo de Sousa Melo restringiu sua conceitualização, baseado em análises da cidade do Porto: os mesteirais seriam aqueles dedicados à transformação de matérias-primas que não estivessem ligados a serviços agrícolas ou rurais - uma visão mais estrita do que a de Oliveira Marques.

A palavra contemporânea de uso corrente mais utilizada para se referir aos mesteirais é o termo "artesão". Porém, como qualquer conceito anacrônico que não está presente nas fontes de forma explícita, há problemas em seu uso. O termo foi desenvolvido pejorativamente durante o século XVIII, no processo da Primeira Revolução Industrial, por teóricos liberais do 'laissez-faire'. Seu objetivo era diferenciar os trabalhadores dos ofícios daquilo que, de acordo com eles, realmente levaria à riqueza dos povos: a indústria fabril de larga escala. Devido a essa possibilidade de distorção ideológica, de modo a garantir maior precisão conceitual, escolhemos o termo medieval "mesteirais" e abandonamos terminologias que possam levar a interpretações equivocadas do período.

Quem são, portanto, os mesteirais? A partir de uma série de documentos e dependendo do grau de complexidade da especialização laboral, podemos identificar várias profissões que se enquadram nessa palavra: ferreiros, peliteiros, alfaiates, oleiros, tanoeiros, sapateiros, entre várias outras. De modo a melhor definir como eles viviam e porque se uniam sob uma mesma terminologia, elegemos três eixos que fazem parte de sua experiência social coletiva: a organização/normatização urbana; a hierarquia interna e externa do trabalho; e a solidariedade das confrarias.


Negócios urbanos medievais, alfaiates, um barbeiro e o que parece ser uma padaria à direita
Negócios urbanos medievais: alfaiates, um barbeiro (que também podia arrancar dentes) e o que parece ser uma padaria à direita. Fonte: Ruas e mercados na Idade Média, miniatura do “Livro do Governo dos Príncipes”, Paris. Biblioteca do Arsenal.

A EXPERIÊNCIA URBANA: O período entre os séculos XI e começo do século XIV foi definido por Jacques Le Goff como sendo o “Apogeu da Cidade Medieval”. Isso se dá devido a um aprofundamento da importância social, econômica, política e cultural do ambiente urbano, além de seu crescimento espacial e demográfico. É nessa aglomeração humana formada pelas encruzilhadas “das mais desvairadas gentes” que os mesteirais florescem - apesar de existirem em algum número nos espaços rurais, senhorios e terras eclesiásticas, é na cidade que grande parte deles passava sua vida.

A vida na cidade possuía suas especificidades, quando comparada ao campo - principalmente no que diz respeito à normatização, realizada pelos concelhos, do cotidiano, do trabalho e da ocupação do espaço. Neste último caso, os mesteirais possuíam um destaque em relação aos demais moradores: as mais importantes profissões eram organizadas em arruamentos e bairros - a “Rua dos Sapateiros”, “Rua dos Alfaiates”, a “Ferraria”, e assim por diante.


Ferreiro medieval
Ferreiro: o ofício de metais era um dos mais importantes na época medieval, sendo que estes mesteirais produziam desde arneses, armas, ferraduras para animais ou utensílios do dia-a-dia. Fonte: Livro de Horas (c. 1320-1330), British Library (fragmentos).

Quando hoje andamos por ruas com denominações de ofícios, relacionamos diretamente com uma herança das atividades profissionais do medievo, pois a toponímia urbana, o ato de conhecer e nomear suas ruas, era essencial para a ordenação dos espaços urbanos. Apesar de os mesteirais não se constrangerem a manter sua oficina ou comércio na rua de seu ofício, a concentração de ofícios em uma mesma artéria oferecia um senso de proteção contra eventuais violências e abusos, além de uma vigia mútua sobre os produtos fabricados, preços e métodos de atrair fregueses.


Carpinteiro medieval
Carpinteiro: Um dos ofícios mais artísticos mas ao mesmo tempo mais procurados. A nobreza encomendava peças de mobília caras mas os carpinteiros também eram chamados para obras civis ou na construção de fortalezas. Fonte: The Hausbücher of the Nürnberger Zwölfbrüderstiftungen, 1425. Biblioteca Nacional de Nurenberga, Alemanha.

AS CLIVAGENS SOCIAIS DO TRABALHO URBANO: As cidades medievais estruturavam-se socialmente a partir de uma série de clivagens sociais. Um habitante poderia ser um cavaleiro ou um peão; um homem bom, vizinho ou morador; ou ainda, de acordo com sua renda, um "maior", um "meiao/mediocre" ou um "menor". Do ponto de vista da hierarquia urbana, os mesteirais portugueses, trabalhadores como eram, estavam responsabilizados pela manutenção da cidade - caíam sobre suas costas os mais diversos impostos, pois não eram ricos o suficiente para ascender à cavalaria porém tinham uma certa autonomia econômica que os colocava entre as camadas médias da sociedade. Raramente chegavam ao status de homem bom - porém não era impossível, como é o caso de Vicente Paes, um alfaiate mencionado em um contrato de Lisboa de 1244, com a denominação "bonus homo".


Sapateiro medieval
Sapateiro: Este ofício era bem pago porque um bom sapateiro recebia encomendas das classes sociais mais altas, logo, com maior poder de compra. Fonte: The Hausbücher of the Nürnberger Zwölfbrüderstiftungen, 1455. Biblioteca Nacional de Nurenberga, Alemanha.

Ainda dentro da própria categoria de mesteirais podemos identificar uma outra hierarquia, uma gradação que vai dos ofícios mais prestigiosos até os mal vistos pela sociedade. Uma fonte interessante referente ao fim da Idade Média é o Regimento de Procissões da cidade de Évora, de 1482. À frente da procissão de Corpus Christi iam ous ourives e picheleiros, seguidos por tosadores e cirieiros, carpinteiros, serradores, pedreiros, taipadores, calçadores, oleiros, telheiros, tijoleiros e assim por diante. No fim da fila vinham atividades tipicamente femininas (fruteiras, regateiras, vendedeiras, padeiras, pescadeiras) e profissões consideradas sujas: carniceiros e enxerqueiros.


Padeiros medievais
Padeiros: talvez a actividade mais importante da época, porque afinal as pessoas sempre precisaram de alimentos. Fonte: Um padeiro e o seu aprendiz (século XVI). Bodlein Library, Oxford.

Cada oficina (ou, na palavra medieval, "tenda") também possuía sua própria organização interna. A historiografia tradicional destaca um padrão tripartite: o mestre era aquele que detinha os meios de produção (os instrumentos de trabalho e a própria tenda) e a administrava; os sergentes, também chamados de companheiros, eram assoldados que recebiam por jornada; por fim, os aprendizes eram rapazes que faziam pequenos trabalhos como atendimento da clientela e entrega de recados. Apesar de existirem exemplos desses para cidades medievais portuguesas, essa organização diz mais respeito à normatização existente nos estatutos das corporações de ofício da Europa Moderna do que no Medievo.


Tanoeiros medievais
Tanoeiros: artesãos que faziam grandes pipas de madeira de pinho ou carvalho para armazenar líquidos como vinho, azeite, água ou outro tipo de produtos perecíveis como carne seca. Fonte: Missal antigo do Mosteiro de Lorvão, Portugal (século XV / XVI).

A historiografia mais recente concede muita atenção para a participação da esfera familiar nos ofícios - principalmente as mulheres e as filhas. Restritas a alguns tipos de trabalho, mulheres estavam distribuídas em diversas etapas da produção - como destaca a pesquisa de Joana Sequeira e Arnaldo de Sousa Melo para os diversos ofícios têxteis. Enquanto mulheres são encontradas desde a preparação da fibra, passando pela fiação e a tecelagem, o acabamento e a confecção dos vestuários eram feitos pelos alfaiates, trabalho masculino por tradição.


Correeiro medieval
Correeiro: Um artesão que fazia e reparava as selas dos cavalos. Mais uma vez, um ofício bastante técnico mas que dava lucro. Quem tinha necessidade de artigos para cavalos? A nobreza ou a burguesia rica. Fonte: Fonte: The Hausbücher of the Nürnberger Zwölfbrüderstiftungen, 1470. Biblioteca Nacional de Nurenberga, Alemanha.

AS CONFRARIAS DOS MESTEIRAIS: Uma das atividades sociais caras aos mesteirais, ainda que não exclusiva, era a organização de uma série de ofícios em confrarias religiosas. Elas surgem a partir do século XII, multiplicam-se no XIII e XIV, e diminuem em quantidade no fim do século XV, quando foram substituídas pelas corporações de ofício - esta sendo, portanto, uma instituição mais moderna que medieval. As confrarias distinguiam-se das posteriores corporações de ofício principalmente em dois aspectos. O primeiro é econômico: enquanto as corporações tinham o interesse de intervir na ordenação dos ofícios na cidade, as confrarias não possuíam esse objetivo. O segundo é da filiação: as corporações possuíam filiação obrigatória, enquanto as confrarias eram voluntárias.

A principal função dessas confrarias era oferecer um espaço de solidariedade social para os membros de um determinado ofício - no espírito das renovações religiosas que a partir do fim do século XI atravessaram a Europa. Eram instituições de ajuda destinada aos vivos e aos mortos: assim como ofereciam proteção aos seus membros em caso de doença e até hospitais privativos, também organizavam missas de óbito pela alma dos confrades. Era, dessa forma, uma instituição de reforço das relações sociais tradicionais da família, do trabalho e de devoção, que agregava seus membros em uma vida em comunidade e que constituía um caráter de formação de identidade para seus membros.


Tintureiros medievais
Tintureiros: ajudantes de alfaiates que tingiam os tecidos com várias cores. Este trabalho era dos mais penosos no mundo dos têxteis medievais. Fonte: Volume II do 'Des Proprietez des Choses' (1482), Bruges.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE AÇÕES COLETIVAS: Como vimos, os mesteirais, apesar de serem profundamente heterogêneos, possuíam um conjunto de experiências comuns aos seus membros que catalisa sua identificação enquanto um grupo. Essa identidade, ainda que fracionária, permite que agissem coletivamente de acordo com seus interesses, motivações, recursos, capacidade de mobilização e organização. Conseguimos perceber essas ações coletivas quando participavam em conjunto de assembleias concelhias abertas no século XIII, quando enviavam comissões paralelas às Cortes régias, ou ainda, no momento em que espaços de política pacífica estavam fechados, buscavam a revolta - como o período entre 1369 e 1385, em que saíram dos bastidores para ocupar, provisoriamente, o palco da disputa política portuguesa.

Os mesteirais eram figuras importantes e mantenedoras das cidades medievais em Portugal. Pagavam impostos, trabalhavam, se organizavam coletivamente e estavam espalhados em suas tendas e oficinas pelo espaço urbano. Seu estudo é imprescindível para compreender de uma forma mais plural a vida citadina portuguesa, oferecendo uma visão que não busque apenas o passado dos grupos dominantes, mas das pessoas comuns. Nas palavras de Walter Benjamin, realizar uma história vista de baixo é “pentear a história a contrapelo”, e os mesteirais são uma das chaves para compreender a história social das cidades por essa abordagem. - Bruno Marconi da Costa

FONTES BIBLIOGRÁFICAS: CAETANO, Marcello - “Prefácio”. In: LANGHANS, Franz-Paul. A antiga Organização dos Mesteres da Cidade de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1942, p. XI–LXXV.

LANGHANS, Franz-Paul de Almeida – “As Antigas Corporações dos ofícios mecânicos e a Câmara de Lisboa”. in Separata de Revista Municipal (Lisboa) 7, 8 e 9. Lisboa: Câmara Municipal, 1942, pp. 3-31. Disponível em: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/.../RevM.../RevMun.htm - Números 7, 8 e 9.

LANGHANS, Franz-Paul de Almeida – As Corporações dos Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua História. Vol. I, Lisboa, 1943.

MARQUES, A. H. de Oliveira – A sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1976.

FERRO, Maria José Pimenta – “A Revolta dos Mesteirais de 1383”. in Actas das III Jornadas Arqueológicas. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1978, pp. 359-363.

COELHO, Maria Helena da Cruz – “As confrarias medievais portuguesas: espaços de solidariedades na vida e na morte”. in Atas da XIX Semana de Estudios Medievales. Confradías, gremios, solidaridades en la Europa Medieval. Estella: Gobierno de Navarra, Departamento de Educación y Cultura, 1992, pp. 149-183.

Obras recentes sobre os estudos dos mesteirais: Destaque para os MedCrafts: projeto com uma equipe de historiadores que tem como objetivo o estudo da regulação das atividades dos mesteirais em Portugal na Idade Média nos séculos XIV e XV através de uma análise comparativa de várias cidades portuguesas. Mais informações em: https://medcrafts2021.wixsite.com/medcrafts

MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: O Porto, c. 1320 - c. 1415. Braga: Universidade do Minho, 2009. Tese de Doutoramento. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/9896

MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – “Os mesteirais no governo urbano do Porto nos séculos XIV e XV”. in SOLORZANO TELECHEA, J. A.; BOLUMBURU, B. A. (coord.) – La Gobernanza de la ciudad europea en la Edad Media, Logroño: Centro de Estudios Riojanos, 2011, pp. 323-347.

MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – “Os mesteirais e o poder concelhio nas cidades medievais portuguesas (séculos XIV e XV)”. Edad Media. Revista de Historia 14 (2013), pp. 149-170. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/24003

SEQUEIRA, Joana, MELO, Arnaldo Sousa. “A mulher na produção têxtil portuguesa tardo-medieval”. Medievalista. Nº11, 2012. Disponível em: https://journals.openedition.org/medievalista/780

SEQUEIRA, Joana. Produção Têxtil em Portugal nos Finais da Idade Média. Dissertação de Doutoramento em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e École des Hautes Études en Sciences Sociales. Porto/Paris, 2012.


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