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O MITO DO “TRATADO” DE ZAMORA DE 1143



Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


O MITO DO “TRATADO” DE ZAMORA DE 1143: A HISTÓRIA DE UM DOCUMENTO QUE NÃO EXISTE

Passado já o dia de 5 de Outubro, feriado nacional pela implantação da República em 1910, esclarecemos um mito antigo sobre outro acontecimento associado a esse mesmo dia e constantemente usado pelos partidários monárquicos como contraponto às celebrações republicanas oficiais: a efeméride da suposta assinatura do “tratado” de Zamora, em 1143. E referimos “suposta” assinatura, e colocamos “tratado” entre aspas porquê? Porque, na verdade, nenhum documento oficial nos chegou até nos sobre o - esse sim, comprovado - encontro entre o rei de Portugal, D. Afonso Henriques, e o seu primo Afonso VII, rei de Leão e Castela e “Imperador de Toda a Espanha”. Confusos? Explicaremos de seguida:

É certo que os dois primos se encontraram, nos dias 4 e 5 de Outubro de 1143, em Zamora, acompanhados pelo legado papal Guido de Vico (BRANCO, 2015: p. 96), que tinha sido enviado à Península Ibérica pela Santa Sé para mediar o conflito político nascido das questões de suserania e vassalagem que se tinham agudizado desde que D. Afonso Henriques tinha adoptado o título de rei, em 1139. No entanto, desse encontro não terá saído nenhum documento oficial, muito menos nenhum “tratado” que regulasse as relações entre os dois reis, ou que tivesse alterado as disposições já estipuladas pelo pacto de Tuy, assinado em 1137, que obrigava o então Infante, ou Príncipe, portucalense a prestar vassalagem ao primo (MATTOSO, 2007: pp. 142-145); (RILLEY, 1998: p. 81). Mais uma vez afirmamos que “não terá saído nenhum documento” porque, colocando a hipótese de este alguma vez ter existido, não há absolutamente nenhuma menção até agora conhecida a esse texto nas chancelarias leonesa ou portuguesa, nem em fontes papais (COELHO et. al., 2019: p. 17).

Sendo assim, que provas temos sobre o dito encontro? Duas cartas emitidas pela chancelaria régia de Afonso VII, uma para Martin Cidez e a outra para Pons de Cabrera (RILLEY, op. cit., p. 80), datadas de dias 4 e 5 de Outubro e expressamente redigidas em Zamora, onde é referido que “Guido, cardeal da Igreja Romana (…) veio a um colóquio do rei de Portugal com o imperador” (DINIS, 1962: p. 26); (MATTOSO, op. cit., p. 212). Visto que nesses documentos escritos pela chancelaria régia leonesa D. Afonso Henriques é pela primeira vez chamado de “rei de Portugal”, temos aqui o reconhecimento tácito da sua realeza (Ibidem). Mas então, de onde veio o mito do “tratado” de Zamora? Não há certezas, mas sabe-se que Alexandre Herculano poderá ter tido conhecimento dessas duas cartas régias leonesas e ter interpretado essa menção como evidência do momento em que o imperador reconheceu pela primeira vez o carácter régio do poder do primo, concluindo que de Zamora teria saído um novo qualquer acordo oficial e ligando esse suposto tratado ao próprio reconhecimento de Portugal como reino independente (COELHO et. al., op. cit., p. 17).

Mas essa tradição historiográfica iniciada por Herculano não assenta em qualquer base concreta, por várias razões: primeiro, mesmo que fizesse (e faça) todo o sentido concluir que foi do encontro de Zamora que resultou o reconhecimento dessa mudança de título, seria sempre abusivo imaginar que existisse um “tratado” ou outro documento que o oficializasse, sem que tal texto sequer fosse conhecido. Depois, porque se a chancelaria leonesa reconhecia D. Afonso Henriques por meio do título régio, mesmo que aparentemente súbito, é provável que essa realidade jurídica já tivesse sido bem assimilada anteriormente (Ibidem). E finalmente, porque a identificação do encontro de Zamora com a certidão de nascimento de Portugal não é adequado porque, de acordo com o contexto político e legal da época, o facto de Afonso VII se referir ao primo como rei não significava que reconhecesse qualquer secessão de Portugal do reino de Leão; pelo contrário: porque D. Afonso Henriques continuava obrigado à vassalagem ao imperador hispânico, essa “independência” seria sempre vista como uma autonomia relativa (Ibid., p. 18).

Para mais, reconhecendo a “subida” de título ao primo, isso significava que Afonso VII, na sua qualidade de imperador, tinha mais um monarca vassalo a acrescer aos de Navarra e Aragão, fortalecendo o seu poder. Simplificando: nem passava pela cabeça de Afonso VII que o título de rei do primo significasse independência política, pelo simples facto de que os laços de vassalagem se mantinham e foram mesmo reforçados pela concessão da tenência de Astorga a Afonso Henriques. Isso mostra claramente como o conceito de independência como o entendemos hoje não traduzia, naquela época, nenhum reconhecimento implícito, ou explícito, de um território como reino, nem do seu chefe político como rei (ibidem). Por seu turno, D. Afonso Henriques conseguiu habilmente ignorar essa obrigação de vassalagem, escrevendo uma carta ao Papa a 13 de Dezembro de 1143, oferecendo a sua homenagem à Santa Sé e afirmando que não reconhecia a autoridade de nenhum outro poder eclesiástico ou secular a não ser a do Papa, prometendo para tal um pagamento anual de quatro onças de ouro e apresentando-se como um ‘miles sancti petri’, i.e., cavaleiro de São Pedro (MATTOSO, op. cit., p. 213). Esse volte-face falhou em parte no imediato na medida em que o Papa Lúcio II aceitou a vassalagem de um “illustri portugalensi duci” e não de um “rex”, não reconhecendo Portugal como reino. Assim se deixava o reino português num “limbo” político que só a confusão a seguir à morte de Afonso VII em 1157 (extinguindo os laços de vassalagem pessoais) e o reconhecimento explícito do título de rei a D. Afonso Henriques por parte do Papa Alexandre III, pela bula ‘Manifestis Probatum’, em 1179, finalmente desbloqueariam (RILLEY, op. cit., p. 81).

- PEDRO ALVES


FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

- BRANCO, Maria João (2015). “Antes da Independência de Portugal” in J. P. Oliveira e Costa, T. D. Matos, & R. Carneiro (Eds.), História de Portugal e Espanha: Amores e Desamores, Círculo de Leitores, (pp. 11-102).

- COELHO, Maria Filomena & RUST, Leandro & MARTINS, Miguel Gomes & MORUJÃO, Maria do Rosário (2019). “Portugal, uma retrospectiva: 1179” (Vol. 21), Rui Tavares (Ed.), Lisboa: PÚBLICO Comunicação Social SA e Edições tinta da china, Lda.

- DINIS, A. J. Dias (1962). “Antecedentes da expansão ultramarina portuguesa: os diplomas pontifícios dos séculos XII a XV” in Revista Portuguesa de História, Tomo X, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

- MATTOSO, José (2007). “D. Afonso Henriques”, Lisboa: Temas e Debates.

- RILLEY, Bernard F. (1998). “The Kingdom of León-Castilla Under King Alfonso VII, 1126-1157”, Philadelphia: Penn University Press.




De José Manuel Vargas: Para a consolidação do mito do tratado, ainda hoje difícil de erradicar (vd. comentários...), muito terão contribuído os livros escolares. Vd. p. ex. História para a 4. a classe, ed. Educ. Nacional, 1941


De José Manuel Vargas: A referência mais antiga que encontro em livros escolares ao suposto Tratado de Zamora, consta do livro do Pe. José Alves Mattoso, Compêndio de História de Portugal, 4.a ed. 1909, p. 34

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