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A morte e a "segunda vida" de Afonso Henriques

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Selo de Dom Afonso Henriques

A morte e a "segunda vida" de Afonso Henriques (1185-1832)

Hoje, poderíamos falar imenso sobre as mortes do Conde Andeiro e do bispo Martinho de Lisboa em 1383, todavia dedicamos o nosso obituário a outra personagem da nossa História. A 6 de Dezembro de 1185, partiu deste mundo Afonso Henriques, na sua Alcáçova de Coimbra, provavelmente com quase 80 anos – se aceitarmos 1106 como a sua data de nascimento mais provável.


Infelizmente, as notícias da sua morte, embora muito melhores qualitativamente do que as relativas ao nascimento, não nos dizem muito sobre as suas circunstâncias. De acordo com Maria João Branco, é perfeitamente possível que o monarca tenha morrido de forma relativamente súbita pelo facto de não conhecermos nenhum testamento depois do emitido em 1179 ou algum codicilo, nem sequer outros sinais de preparação da morte na sua chancelaria. Por enquanto, embora intrigante, tal argumento é meramente uma hipótese, pois não sabemos se desejava alterar o testamento nem conhecemos muito sobre o estado de saúde de Afonso Henriques após a sua estadia nos banhos de Lafões em 1169. As possíveis consequências do acidente com o ferrolho da porta de Badajoz são discutíveis e desconhecemos outras notícias a não ser talvez a perda de um dente, segundo o relato da abertura do túmulo em 1832, em data incerta. De qualquer forma, três dias depois, no dia de Santa Leocádia (9 de Dezembro), Sancho I fez a sua entrada formal na “urbs regia” do pai e assumiu o poder pleno sobre o reino, num clima auspicioso e altamente carregado de simbologia: afinal, Santa Leocádia era uma mártir paleocristã cuja basílica em Toledo estava ligada à monarquia goda de Toledo. Assim, o novo rei de Portugal colava a sua imagem à luta contra o infiel e às pretensões ástur-leonesas de “Reconquista”.


O primeiro monarca da casa de Borgonha foi enterrado na galilé de Santa Cruz de Coimbra, do qual era patrono, em campa rasa aparentemente humilde, pelo menos para as gerações posteriores. Apesar desta pobreza material, a tampa sepulcral possuía uma outra riqueza: a sua eruditíssima inscrição latina, provavelmente escrita por um cónego regrante do mosteiro, cujo domínio literário do latim é por de mais conhecido. Apresentamos aqui a sua tradução, retirada da biografia do rei por José Mattoso, devido à sua importância para se perceber a propaganda régia e imagens da realeza no Portugal de finais do século XII:


“Aqui jaz um outro Alexandre, ou outro Júlio César, guerreiro invencível, honra brilhante do orbe. Douto na arte de governar, alcançou tempos seguros, alternando a sucessão da paz e das armas. Quanto a religião de Cristo deve a este homem provam-no os reinos conquistados para o culto da fé. Alimentado pela doçura da mesma fé, cumulou, além das honras do reino, riquezas para os pobres infelizes. Que foi defensor da Cruz e protegido pela Cruz assinala-o a Cruz, formada de escudos, no seu próprio escudo. Ó Fama imortal, ainda que reserves para ti tempos longos, ninguém pode proclamar palavras dignas de seus méritos.”


Afonso Henriques representado no "Compêndio de crônicas de reis do Antigo Testamento, gentios, cônsules e imperadores romanos, reis godos e dos reinos de Castela, Aragão, navarra e Portugal" (século XIV). Biblioteca Nacional de Espanha, mss / 7415.

Cópia simplificada do escudo de Afonso Henriques presente no cadeiral manuelino de S. Cruz de Coimbra (século XVI).

Mais uma vez, tal como noutros escritos de Santa Cruz ou nos actos da chancelaria régia, é enfatizada a natureza carismática da monarquia garantida por vontade divina, expressa tanto na liderança da guerra contra os infiéis como na protecção da Igreja ou na caridade para com os pobres. Assim, a realeza era separada do resto da nobreza, da qual o rei ainda era pouco mais do que um “primus inter pares”. Independentemente disto, o túmulo original não chegava para Manuel I, que o considerava indigno de reis portugueses. Consequentemente, ordenou a execução de novos túmulos com jacente no altar-mor da igreja, tanto para Afonso I como para Sancho I, integrantes de um programa de exaltação da monarquia portuguesa e da dinastia de Avis. São estes túmulos manuelinos, finalmente esculpidos em 1518-1522 por Nicolau de Chanterenne e Diogo de Castilho, os visitáveis actualmente.


Tumulo Afonsino

Pormenor do túmulo afonsino, com a jacente manuelina do túmulo de Afonso Henriques em baixo. Note-se a construção de uma imagem ao mesmo tempo guerreira e pia, de acordo com os programas de exaltação da monarquia e de santidade do monarca que tanto Manuel I como o Mosteiro de Santa Cruz procuravam.

Pormenor do tumulo

Ainda ligados ao túmulo de Afonso I estavam a sua espada (símbolo de autoridade régia, da paz e justiça, para além do óbvio uso bélico) e escudo, religiosamente guardados pelos monges crúzios em conjunto com o corpo embalsamado do monarca. Sem querermos explorar muito a fundo a complicada questão do culto tardo-medieval de Afonso Henriques, a qual, para ser discutida apropriadamente, precisaria de muito mais espaço do que o possível aqui e poderá ser desenvolvida ainda mais no futuro, gostaríamos de deixar alguns apontamentos sobre esta “segunda vida” do primeiro rei da casa de Borgonha.


A "Espada de Afonso Henriques", proveniente do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e exposta no Museu Militar do Porto. Ao contrário do que é vergonhosamente afirmado pela instituição, este item não é a espada original. Pelo contrário, trata-se de uma arma produzida em finais do século XVI para substituir a "original" (?) levada para o Norte de África por D. Sebastião.

Como já discutimos aquando da nossa publicação sobre a batalha de Ourique, o escudo de Afonso Henriques acabou por tornar-se o símbolo da casa régia portuguesa e do próprio reino, apesar de uma simplificação do desenho a partir de Sancho I. Como se pode ver na cópia (simplificada) do cadeiral manuelino de Santa Cruz e de acordo com vários autores modernos, seria um escudo de pau de figueira forrado por couro de boi, com 5 escudos azuis dispostos sobre um carbúnculo no qual se apoiariam 4 escudos menores, rodeados por outros 10 ainda mais pequenos sobre um dos cordões do carbúnculo. Rapidamente, associaram-se vários significados a estes elementos. Para o bispo Martinho de Lisboa, numa sua embaixada a Carlos V de França em nome de D. Fernando em 1380, os escudos maiores eram justificados pelas 5 feridas recebidas pelo rei na batalha de Ourique, numa tradição que ligava as feridas de Afonso I à legitimidade da casa régia portuguesa por direito de conquista em nome da fé cristã. Contudo, na segunda redacção da “Crónica Geral de Espanha de 1344”, já de finais do século, os escudos aparecem finalmente associados aos reis mouros e as chagas representam os dinheiros usados na traição de Cristo. Mais tarde, o “Livro de Arautos” (1416) junta estes significados no contexto do famoso “Milagre de Ourique” e ainda menciona os cinco escudos supostamente quebrados por Afonso I na batalha, uma outra tradição a ligar os escudos à legitimidade régia. No respeitante ao carbúnculo, Frei Nicolau de Santa Maria, no século XVII, notou ainda que teria sido colocado como lembrança da vitória sobre os muçulmanos em Ourique, o que, independentemente de ser verídico ou não, constitui uma interpretação moderna extremamente interessante: existe uma clara similaridade com o mito das origens do escudo de armas de Navarra, também associado a vitórias sobre os “infiéis”...


Túmulo manuelino de Sancho I, executado em 1518-1522 por Diogo de Castilho e Nicolau de Chanterenne.

Ainda uma outra tradição do “Livro de Arautos” muito importante e directamente relacionada ao espaço conta como, no século XV, se acreditava que o escudo afonsino caía milagrosamente quando um rei de Portugal morria. Indubitavelmente, aqui verifica-se mais uma vez a ligação entre a monarquia e a guerra, assim como entre a queda das armas e a morte do seu possuidor, também patente em rituais fúnebres da época como o “correr les armes”. Infelizmente, apesar de todo este simbolismo, não temos o rasto de ambas as peças. No caso da espada, desapareceu com D. Sebastião no Norte de África em 1578, enquanto o escudo sobreviveu até ao século XVIII, quando ainda foi descrito por Caetano de Sousa, mas entretanto perdeu-se. Mesmo assim, em finais do século XVI, os monges crúzios fizeram uma nova espada de substituição para ficar suspensa sobre o túmulo actual, hoje exposta no Museu Militar com a pretensão errónea de se tratar de um original.


Fachada actual do Mosteiro de Santa Cruz, fundação de padroado régio criada por S. Telo em 1131, no local onde ficavam os banhos régios. Hoje em dia, depois das reformas manuelinas e barrocas, pouco resta do monumento original, contudo os níveis inferiores dos muros laterais da fachada ainda são do século XII. À esquerda da fachada do Mosteiro de Santa Cruz, encontra-se a igreja de S. João de Santa Cruz, uma igreja paroquial do século XVI criada depois da extinção do Mosteiro das Donas de Santa Cruz. também regrante. Está ocupado actualmente pelo icónico café "Santa Cruz".

Já quanto ao corpo, a questão é mais complicada. De acordo com João Homem, citado mais tarde por Frei Timóteo dos Mártires, o corpo estaria incorrupto, bem cheiroso e com vestes suspeitosamente novas na aparência (seriam mudadas regularmente?), sendo a perna afectada pelo ferrolho mais pequena. Por contraste, Frei Nicolau de Santa Maria descreveu uma cerimónia de beija-mão do cadáver coroado, que tem sido geralmente menos aceite como verosímil. José Mattoso lançou algumas dúvidas sobre a veracidade do relato, mas talvez haja aqui algo muito mais concreto do que a transcendente “crença no sobrenatural” indubitavelmente presente na mentalidade renascentista. É bem sabido como Santa Cruz acarinhou particularmente a memória dos seus Santos Reis, realizando no caso de Afonso Henriques um banquete com 100 pobres todos os anos no aniversário da sua morte, para além dos rituais litúrgicos habituais (nomeadamente missas e procissões fúnebres). A partir do século XV, essa memória intensificou-se com a geração de iniciativas para a santificação do Fundador junto do Papado, no contexto da reforma do Mosteiro de Santa Cruz e da sua promoção como panteão régio junto da corte (assistente no processo de santificação).


A igreja com as ruínas da galilé do mosteiro de São Pedro de Ferreira (século XIII). Até um período bem tardio, a nobreza era enterrada nas galilés dos mosteiros e igrejas do seu padroado, por não poder ficar dentro das igrejas. Alguns desses autênticos panteões, como os da perdida Capela do Corporal em Paço de Sousa ou a galilé de São Pedro de Ferreira, atingiam tamanhos impressionantes.

Ora bem, não havia melhor prova da santidade de alguém... do que um corpo preservado. Quer por tratamento do corpo já desde o século XII ou mais provavelmente redescoberta no próprio século XV (bem sabemos como um corpo pode não se decompor com as condições certas de humidade, temperatura e solo e mumificar naturalmente), é bem provável que os crúzios estivessem a preservar o corpo do rei e a usá-lo como chamariz para a corte régia e os fiéis de Coimbra. Isto até Manuel I ter mandado fechar definitivamente o túmulo de Afonso I. Assim o atesta Manuel Severim de Faria, que descreve como o corpo era sentado numa cadeira nos ofícios divinos mais importantes e mostrado ao povo no seu caixão uma vez por ano, podendo os populares beijar a mão do rei. As fontes usadas podem ser tudo menos fiáveis, mas talvez devam ser levadas a sério, tendo em conta o contexto histórico descrito e casos semelhantes como a devoção da Rainha Isabel de Aragão (ainda hoje existente) ou do esquecido Santo Homem Bem-Cheiroso de Leça do Balio. De resto, são bem claras ao apresentarem todos os sinais de processamento do corpo pelo menos nos séculos XV-XVI, como um cheiro agradável completamente alheio a um cadáver em decomposição e possivelmente roupas mudadas, para além da sua constante manipulação e abertura ao público.


Galilé do mosteiro de Vilarinho (Santo Tirso), ainda praticamente intacta. Tal como a de São Pedro de Ferreira, serve para ilustrar como seria uma galilé na Idade Média.

Em forma de epílogo a esta longa história multissecular, acabamos com a abertura do túmulo por D. Miguel em 1832, três séculos depois de Manuel I ter fechado o sarcófago. Infelizmente, o corpo de Afonso Henriques já se tinha decomposto nessa altura, só restando os ossos. Descritos como grandes, a verdade é que não sabemos nada do seu tamanho, pois a descrição da “Gazeta de Lisboa” pode ser uma pura exaltação do herói. Talvez uma abertura do túmulo fosse útil nesse aspecto, mas seria difícil abri-lo sem o danificar e as ossadas do rei foram em momento indeterminado misturadas com outras de várias pessoas dos séculos XII a XVI, pelo que seria muito difícil fazer tal estudo.

Fontes:


Agostinho, Paulo Jorge (2012). “Vestidos para Matar. O Armamento de Guerra na Cronística Portuguesa de Quatrocentos”. Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 134.


Barroca, Mário Jorge (2013). " As quatro faces de Rodrigo Sanches". "Portvgalia", Nova Série, vol. 34, Porto, DCTP-FLUP, 2013, pp. 151-189.


Branco, Maria João (2005). “D. Sancho I. O Filho do Fundador”. Círculo de Leitores, 1ª edição, pp. 101-102.


Fernandes, Carla Varela (2017). “Com a Espada e a Cruz. A imagem de D. Afonso Henriques na escultura medieval portuguesa”; in Barroca, Mário Jorge, “No Tempo de D. Afonso Henriques. Reflexões sobre o primeiro século português”. CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, pp. 78-80.


Mattoso, José (2007). “D. Afonso Henriques”. Temas & Debates, 2ª edição, pp. 372-376.


Mattoso, José (2015). “Identificação de um País: Oposição/Composição”. Temas & Debates, 6ª edição, pp. 636-640.


Nascimento, Augusto Aires (1977). “O Livro de Arautos, “De Ministerio Armorum”. Estudo codicológico, histórico, literário, linguístico, texto crítico e tradução”.


Rosa, Maria de Lurdes (2010). “O corpo do chefe guerreiro, as chagas de Cristo e a quebra dos escudos: caminhos da mitificação de Afonso Henriques na Baixa Idade Média”, in “Santos e Demónios no Portugal Medieval”. Fio da Palavra, pp. 159-184. ~ José



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