Memoriais e Padrões
- InfoBlog de JD
- 13 de fev. de 2020
- 10 min de leitura
Atualizado: 12 de out. de 2021
Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',
MEMORIAIS E PADRÕES: Monumentos medievais escondidos à vista de todos.
Podemos encontrá-los nos lugares mais insuspeitos: seja nos adros das igrejas, à beira dos caminhos ou nas praças dos centros históricos das vilas e cidades na Europa. Passamos por eles sem lhes dar grande atenção ou então o nosso olhar demora-se mais um pouco, tentando dar-lhes algum significado. Muitas vezes nem sabemos mesmo como se chamam estes monumentos, cruzes e arcos de pedra, mas apenas que estão lá e lá sempre estiveram desde tempos imemoriais. E calha bem esse nome, porque parece ser exactamente para celebração da memória a razão pela qual muitos foram construídos.
MAS COMO SURGIRAM E PARA QUE SERVIAM REALMENTE ?
Dos chamados Arcos Memoriais sobrevivem apenas uma meia dúzia no Norte de Portugal, e, embora vários investigadores evidenciem o seu carácter local único, evidenciando um modo de construção intrinsecamente português, temos de ter alguma cautela. Os memoriais, sendo de influência romana, é natural que pudessem estar espalhados um pouco por toda a Europa. É preciso relembrar os sete memoriais construídos no caminho entre Paris e Saint-Denis, a fim de assinalar o percurso fúnebre de São Luís, rei de França, ou dois monumentos similares, do período alto-medieval, que se encontram na Arménia, entre outros, dos quais falaremos mais adiante.
Envoltos em mistério e indefinição quanto às suas reais funções, estes pequenos monumentos de estilo Românico ou Gótico, levantados na margem das estradas provavelmente entre o século XI e inícios do XV, têm despertado a atenção dos historiadores desde há mais de 100 anos. A tradição popular designa-os por “arcos”, “arquinhos”, “memoriais” ou “marmoirais”. Quanto às origens, uma das versões mais veiculadas atribuía a sua construção aos tempos da presença Árabe (daí o nome “marmouros” ou “arco dos mouros” como também são conhecidos). Esta acaba por ser uma alegação bastante comum em terras Lusas, desde a Idade Média, quando as populações não conhecem a origem concreta do património histórico, sobretudo do mais antigo, tendem a encontrar justificações no tempo da Reconquista e da luta contra os Muçulmanos. No entanto, estas são bem mais precoces, remontando à civilização Romana e aos primeiros séculos da Cristandade o costume de mandar sepultar os mortos em grandes túmulos - “monimenta” ou “memoriae” - junto das vias mais movimentadas, algo que perdurou até ao fim da primeira metade do Medievo.
Uma possibilidade para o seu aparecimento prende-se igualmente com a proibição do enterramento dentro das igrejas, pois só ao tempo do papa Gregório Magno (590-604), é que surgiram os primeiros cemitérios, geralmente nos adros das igrejas por estas estarem vedadas aos enterramentos. Entre nós surgem, pelo menos, desde o Concílio de Braga de 561. Se os memoriais surgem na documentação a partir do século XI, parece que por volta dos séculos XV e XVI já se teria perdido há muito o hábito da sua construção. Este aspecto coincide com o facto de, a partir da primeira metade do século XIV, se começarem a praticar de novo os enterramentos de prestígio de leigos dentro das igrejas. De facto, acredita-se também que tendo os memoriais entrado em degradação, muitos dos cadáveres que albergavam possam ter sido trasladados para outros lugares sagrados como mosteiros e as ditas igrejas.
Deste modo, alguns académicos consideram que os Memoriais conjugam o aspecto funerário com a lembrança de uma personalidade notável, pois como o próprio nome indica, os monumentos subsistentes, mais do que sepulcrais, são padrões memorativos, certamente ligados a actos fúnebres e erguidos fora da área benzida dos templos. Pela arquitectura que apresentam - imitando uma cavidade sepulcral encimada por um arco decorado - assemelham-se bastante aos arcossólios que encontramos nos mosteiros e igrejas Românicas e Góticas que lembram, para a posteridade, quem ali está tumulado. Estes encomendadores seriam nobres ou eclesiásticos locais que ajudaram a construir esses espaços sagrados e a fomentar economicamente e socialmente esses territórios.
O problema é que, embora o vocábulo “mermorial” ou “mormoiral” reporte para uma memória fúnebre, este pode corresponder a uma tipologia de monumento de período mais recuado, como as mamoas megalíticas. Outra questão é saber quem ou o que se pretende memorar: são raríssimos os casos que identificam a pessoa sepultada ou que permitam concluir sobre a sua exacta função. Investigando a documentação chegamos ao Livro Preto da Sé de Coimbra, que, para o ano de 1088 aponta a existência de um “illo mermorial de Ennego”, localizado no lugar de Recarei, em Matosinhos. Nas Inquirições de 1258, é referido, por duas vezes, um “mormoriale Dompni Pelaggi Truytosendiz”, situado em Macieira da Maia. As Inquirições de 1343 falam de “mormouraes velhos de Sigães” que provavelmente estariam implantados perto de Terroso e de Paranhos (Póvoa de Varzim). A Carta de Couto do Mosteiro de São João de Longos Vales (Monção), datada de cerca de 1199, estende os limites da propriedade até aos “momuraes”.
Testemunhos desta dualidade são facilmente encontrados na tradução galaico-portuguesa das “Sete Partidas”, de rei Afonso X de Leão e Castela (1252-1284), onde é esclarecido que existiam quer sepulturas baixas, as “campam”, quer as construídas de forma volumétrica, designadas de “moimento”. No entanto, o rei Sábio não deixa de criticar aqueles “que fazē as sopulturas muyto altas ou as pintā tāto que ssemelhā mays altares que moimētos”. Embora isto se refira provavelmente aos sarcófagos com jacente, também referidos por “moimentos”. Mais, esclarece que estas “se fazē mays a prazer e a uoontade dos uiuos, que nõ he a bē nē a prol dos mortos”, confirmando assim a ideia de memória que está subjacente a estes monumentos. Não obstante termos referências documentais para a existência dos ditos “moimentos” em Castela, não encontrámos provas de que a sua arquitectura fosse similar aos marmoriais em Portugal ou que algum deles tenha sequer sobrevivido até aos nossos dias, pelo menos na bibliografia consultada. O mais provável é que nem se refiram ao mesmo tipo de estruturas, mas sim a túmulos ou cenotáfios.
MARMORIAIS PARA A REALEZA, NOBRES E GUERREIROS:
Outras versões indicam-nos como estações de paragem dos cortejos fúnebres de personalidades com peso social assinalável, como os Memoriais de Ermida (Penafiel), de Santo António (Arouca) e do Sobrado (Castelo de Paiva). Acredita-se terem sido construídos com o intuito de lembrar a passagem dos restos mortais da Infanta Mafalda Sanches (1195-1256) filha dos reis Sancho I e Dulce de Aragão, de Tuías, onde faleceu, para o Mosteiro de Arouca: “Onde quer que se detinham, puzeram depois certas memorias & arcos triumphaes de pedra lavrada, que inda hoje perseveram”, escreveu Jorge Cardoso, no livro “Agiologio Lusitano”, de 1666.




Para o Memorial da Ermida é apresentada a hipótese de associação a D.Sousinho Álvares, alcaide-mor do desaparecido castelo de Bugéfa, segundo um documento de 1152, mas que, tendo em conta o estilo do monumento, seja mais provavelmente um memorial levantado algum tempo depois da sua morte, para o relembrar. O mesmo sucede para o Memorial do Sobrado, atribuído a um duelo que opôs um tal D.Fafes a D.Martim de Bulhões (familiar de Santo António de Lisboa).
O Memorial de Paradela também se associa a ilustres guerreiros, servindo talvez para albergar o túmulo de Diogo Anes, nobre local e proprietário dessas terras, em 1175; ou o de D.Pedro, Conde de Barcelos, quando ia a sepultar no Mosteiro de Tarouca, em 1354. Já o Memorial de Odivelas pode estar relacionado com os cortejos fúnebres de monarcas, eventualmente de D.Dinis ou de D.João I, assinalando o local onde as freiras do mosteiro foram esperar o caixão do primeiro para lá ser sepultado, em 1325, ou, no caso do segundo, como local de paragem da sua urna durante o cortejo no caminho até ao Mosteiro da Batalha, em 1433.


Quanto ao Memorial de Alpendorada, há um pormenor que merece destaque, quer porque nos dá uma vaga pista sobre a sua natureza em particular, como também pode ser um elemento passível de datação, mesmo que relativa. Trata-se, pois, da longa espada que está gravada nas pedras superiores do plinto que serve de base ao arco. O desenho da lâmina está de acordo com a tipologia comum aos séculos XII e XIII, mostrando gumes paralelos e uma ponta pouco pronunciada, denunciando assim uma função essencialmente cortante. A partir da segunda metade do século XII imperam os pomos com forma discoidal, idêntica à ali gravada. Este atributo da nobreza encontrava-se igualmente no monumento de Lordelo, demolido no século XIX, e ainda se encontra no de Sobrado. Também na chamada “campa dos templários”, em granito existente perto do Convento de Alpendorada (Marco de Canaveses), existem relevos nos topos laterais que, apesar da sua difícil perceção, poderiam corresponder a uma espada, de cada lado.



Assim, a presença destes ícones caracterizadores da nobreza permite-nos, desde logo, aferir que estamos diante de um monumento memorativo, muito provavelmente de um cavaleiro. E também não é por acaso que estes surgem fora das áreas ditas sagradas. Na Idade Média, as sepulturas afastadas dos templos correspondem geralmente aos “fiéis de Deus” que, de certa forma, tiveram morte acidental. Além disso, os homens mortos em duelo estavam eclesiasticamente proibidos de serem sepultados em locais sacralizados. Para além da sua simbologia habitual, podemos também atribuir com alguma probabilidade estes monumentos a cavaleiros mortos em duelo ou em batalha. Só o aparecimento de novos dados documentais poderá esclarecer esta questão, embora seja certa a existência de uma relação entre estes monumentos e pessoas ligadas à atividade guerreira, o que poderá explicar a grande quantidade de marmoirais documentados em território português para a Idade Média.
ESPAÇOS DE ORAÇÃO E DEMARCAÇÃO
Para além das teorias fúnebres e comemorativas, estes arcos podiam simplesmente marcar locais de oração e procissões, sacralizando o território, tal como o fazem os Cruzeiros e as Alminhas, de que falaremos adiante. Uma outra tese aponta para a utilização destas estruturas tanto na demarcação de territórios, por se situarem junto às estradas ou no cruzamento das principais vias medievais, ajudando a referenciar os caminho, como assinalando os domínios eclesiásticos, legitimando-os. O Memorial de Odivelas, cuja construção remontará ao século XIV, para além da hipótese referida acima, segundo a tese mais aceite recentemente, poderia também ter assinalado o limite do couto das religiosas do Mosteiro próximo, tal como o Arco de Paradela demarcaria o limite do couto do Mosteiro de São João de Tarouca.
AS CRUZES DE LEONOR E OS “MONTJOIES” DE SÃO LUÍS:
Se em Portugal os marmoriais tinham uma arquitectura muito própria, na restante Europa Ocidental a sua tipologia era bem diferente, assemelhando-se mais a padrões ou obeliscos. Destes, os mais conhecidos são as Cruzes de Leonor: 12 monumentos em pedra de estilo Gótico, ricamente decorados, construídos entre 1291 e 1294 por mandado do rei de Inglaterra, Eduardo I, em memória da sua esposa Leonor de Castela, marcando os lugares de repouso nocturno ao longo da rota tomada pelo corpo desta quando foi levado de Harby, no sudeste do reino, para Londres, numa procissão fúnebre. Apenas três originais sobrevivem intactos nos dias de hoje em Geddington, Hardingston e Waltham.



Em França, 7 ou 9 memoriais semelhantes foram erguidos após 1270 nas paragens do cortejo fúnebre do rei Luís IX entre Paris e Saint-Denis, onde repousa. Chamados de “Montjoies”, esses padrões encimados por cruzes simbolizavam o martírio do monarca em Tunis, durante a Oitava Cruzada, para além de oferecerem protecção espiritual aos peregrinos que se dirigiam à Abadia de Saint-Denis, convidando-os a rezarem pela alma do rei-santo. Acima de tudo, tais monumentos estavam intimamente ligados à santificação dos monarcas Capetos. Infelizmente todos eles foram destruídos aquando do caos da Revolução de 1789, embora tenhamos representações artísticas dos mesmos em iluminuras da época e em desenhos de séculos posteriores.



OS HOCHKREUZ NO SACRO-IMPÉRIO E OS TÚMULOS DOS ESCALÍGEROS EM ITÁLIA:
Se em Inglaterra e França os memoriais foram erguidos e financiados pela Coroa, nas terras do antigo Sacro Império Romano, as chamadas Altas Cruzes (Hochkreuz) em Godesberg e em frente aos paços do Concelho de Aachen, devem a sua existência a iniciativas episcopais e municipais. A de Godesberg ainda existe hoje, embora de uma forma muito restaurada, actualmente exposta no Rheinisches Landesmuseum em Bona, estando hoje no local original uma cópia moderna. Durante grande parte da Idade Média tardia e do período moderna, esse padrão demarcou a fronteira sul das terras do eleitorado-palatino de Colónia (Kurkoln), um dos principados eclesiásticos mais importantes do Império. As circunstâncias precisas da sua construção são desconhecidas, embora seja provável que tenha sido patrocinada por Walram de Julich, arcebispo e príncipe eleitor entre 1332 e 1349. Apoiante fervoroso do imperador Carlos IV, Walram estudou na Universidade de Paris na década de 1320 e provavelmente estaria familiarizado com os “Montjoies” de Luís IX.



Em Itália, temos os túmulos dos Escalígeros (Della Scala), cinco monumentos funerários Góticos de Verona, comemorando a família que governou a cidade e vastos territórios no norte da Península durante o século XIV. Localizados do lado de fora da igreja de Santa Maria Antica, são principalmente estruturas abertas, semelhantes a tabernáculos, erguendo-se acima do solo, com um sarcófago encimado por um elaborado baldaquino, encimado por uma estátua do falecido, montado e usando armadura. Segundo o historiador francês Georges Duby, são um dos exemplos mais destacados da arte medieval.





- PEDRO ALVESFONTES BIBLIOGRÁFICAS:
- Centro de Estudos do Românico e do Território (Rota do Românico): Textos de Joaquim Luís Costa.
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- BEIRANTE, ngela – “Para a história da morte em Portugal”. In Estudos de História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.
- BOTELHO, Maria Leonor – A historiografia da arquitectura da época românica em Portugal. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010. Dissertação de doutoramento em história da arte portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Texto policopiado.
- SILVA, António Manuel dos Santos Pinto da – «Marmoiral» de Alpendurada, Marco de Canaveses: um tipo raro na tumulária medieval. In Marco histórico e cultural: actas de eventos marcoenses. Marco de Canaveses: Câmara Municipal do Marco de Canaveses, 1998.
- O memorial de Santo António, Sta. Eulália, Arouca e os “marmoirais” medievais: revisão da sua problemática e propostas para uma análise globalizante. In JORNADAS DE HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA DO CONCELHO DE AROUCA, 1, Arouca, 1986 – Actas. Arouca: [s.n], 1986. Jornadas realizadas a 28 e 29 de setembro de 1986.
- VITORINO, Pedro – Acerca de “Os marmoirais”. Douro-Litoral. N.º 6 (1943).
- ROSAS, LÚCIA CARDOSO – “Espaço religioso e transformação. A fundação de capelas na época gótica”. In SARAIVA, ANÍSIO; MORUJÃO, MARIA DO ROSÁRIO, “O Clero Secular Medieval e as Suas Catedrais. Novas Perspectivas e Abordagens”. Universidade Católica Portuguesa – Centro de Estudos de História Religiosa, 2014.
- TIMMERMANN, ACHIM - “Freedom I do reveal to you: Scale, Microarchitecture, and the Rise of the Turriform Civic Monument in Fourteenth-Century Northern Europe”, Journal of the Association of Art Historians.
- BLICK, SARAH / GELFAND, LAURA D. - “Push Me, Pull You: Imaginative, Emotional, Physical, and Spatial Interaction in Late Medieval and Renaissance Art”. Volume One, Brill Editors, Boston 2011.
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- Marini, Paolo; Ettore Napione; Gian Maria Varanini, eds. (2004). Cangrande Della Scala – La Morte e il corredo funebre di un principe nel medioevo. Venice: Marsilio Editori.
- DUBY, GEORGE - “O Tempo das Catedrais”, 1993. Editorial Estampa, ISBN: 9789723309324
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