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Justiça medieval, crime e castigo

Foto do escritor: InfoBlog de JDInfoBlog de JD

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Pena capital por decapitação, reservado aos condenados nobres. Os criminosos de classe social baixa morriam na forca. (Crónicas de Jean Froissart).

Justiça Medieval...crime e castigo.


No dizer de Vítor Pinto, um grande medievalista, "Ontem como hoje, a justiça para funcionar terá que ser implacável, inflexível, persistente e economicamente favorável para uns e desfavorável para os infractores. Ao ser implacável, o povo retrai-se e pensa; ao ser inflexível, o povo conforma-se e anui; ao ser persistente, o povo não cai duas vezes no mesmo erro; finalmente, e em termos económicos, o povo -arraia-miúda- não se pode dar ao luxo de perder aquilo que pouco ou nada tem, em prol daqueles que muito amealham, pelo facto de cometerem infracções." (in Estudo Económico no Livro das Posturas).


Procuramos dar uma visão abrangente da aplicação de Justiça no medievo, quais as semelhanças e diferenças para os nossos dias? Haveria mais ou menos crime na época do que hoje em dia? E que punições estavam previstas?


JUSTIÇA E PAZ:


Não há melhor rei do que o que conserva o seu reino em paz. E não há melhor modo de o conseguir do que a justiça. Duas ideias profundamente enraizadas e incontestadas na Idade Média. Estamos no cerne mesmo deste estudo; clarifiquemos os conceitos. O que é justiça? Nos dicionários e léxicos modernos, encontraremos dezenas de definições ou, o que vem a dar ao mesmo, uma prudente omissão. Os juristas, teólogos e teóricos do poder medievo tinham pelo contrário uma ideia razoavelmente clara. De que falavam eles quando falavam de justiça? "Pois resolver e determinar quistos e dar a cada um o seu é ofício de rei e este tal exercício se chama iustiça". Nunca se perca de vista esta ideia: fazer justiça é, antes e acima de tudo, dar a cada um o que é seu.

Esta concepção de Justiça institucional em que o monarca era o garante máximo e final da sua aplicação evoluiu a partir dos séculos XI e XII, quando a primazia do Direito Romano ganhou vantagem sobre formas de aplicação penal mais arcaicas.

Longe iam os tempos das Ordálias, julgamentos divinos, em que a inocência ou a culpabilidade de alguém se estabelecia mediante a vontade de Deus, por exemplo, segurando um objecto de ferro a ferver (no caso dos reús serem mulheres) ou colocando a mão em água a ferver (no caso dos homens). Se três dias depois as feridas resultantes estivessem a sarar o indivíduo era considerado inocente, senão, era culpado.


Com a queda do Império Romano e a chegadas das tribos germânicas à Europa Ocidental trouxe com eles as suas próprias leis tribais que cedo entraram em conflito com o Direito Romano vigente. No caso Visigodo, o protocolo para julgamento consistia na reunião de assembleias, sendo ainda o historiador Romano Tácito quem descreve alguns dos seus trâmites, causando-lhe espécie a severidade do ritual simbólico e formalista, que então se estabelecia: o chefe tomava a palavra e, ao ouvi-lo, a turba, se a notícia os desagradava, repeliam-na com murmúrios de reprovação; mas, se aprovada, agitavam as lanças, chocando-as entre si; "honoratissinum assensus genus est armis laudare" o sufrágio pelas armas era o sinal mais honorável deste assentimento (Germânia, XI).

Por isto, buscava-se evitar retaliações ou vinganças entre os clãs, sendo comum, nessa contingência, o recurso ao "wergeld" por meio do qual o ofensor pagava ao ofendido uma multa ou compensação pecuniária, representada por um bem material ou dinheiro, (de "wir" homem, e gold" ouro, do prejuízo ocorrido). Este hábito do "wergeld" foi bastante comum na Inglaterra Anglo-Saxónica até à chegada dos Normandos após 1066, quando o rei Guilherme, o Conquistador, não a abolindo completamente, legislou para que o valor dessas compensações passassem a ser pagas aos agente régios da Justiça.


Vista típica de uma vila portuguesa medieval: as muralhas do castelo à esquerda, o pelourinho, a igreja e o enforcado, em cima. (Desenho do Livro das Fortalezas, de Duarte d'Armas. 1509).

O CRIME EM PORTUGAL BAIXA IDADE MÉDIA (século XV):


Analisando exaustivamente as cartas de perdão e os livros de posturas é possível construir um padrão sobre o tipo de crimes mais comuns, embora esta hierarquia não esteja presente na documentação da época, que não tinham nenhuma (embora destacassem certos delitos, aparentemente por mais graves: os que cometeram traição ou aleivosia, os hereges, os sodomitas, os que mataram homens e mulheres de propósito, os que levaram as esposas dos maridos, os que fizeram moeda falsa, os ladrões públicos ou assaltantes de caminhos). Quando passamos das fontes normativas à restante documentação, como as cartas de perdão, não nos apercebemos de nenhuma hierarquia clara de crimes; conhecemos muitas sentenças de juízes, que também não nos sugerem uma classificação dos delitos segundo a gravidade. Quer nas primeiras instâncias quer na Corte, o mesmo crime pode receber um tratamento que vai do perdão puro e simples à pena de morte, passando por multas ligeiras ou pesadas e por degredos, com ou sem penas corporais à mistura. O roubo é um bom exemplo do que acabamos de afirmar: ora parece uma infracção de extrema gravidade, só expiada numa forca, ora, banalizada e perdoada a troco de uma multa simbólica. Em outros reinos, os historiadores debatem-se com o mesmo problema.

Voltemos porém à nossa tipologia: construimo-la procurando respeitar o sistema de valores dominante há cinco séculos. Quer dizer: hoje nem é crime "dormir com uma moça" nem "instigar um criado a abandonar o amo" - naquele tempo era. Nos nossos dias, produzir dinheiro falso é um delito tipicamente económico; na Baixa Idade Média era, antes de mais, a violação de um dos mais importantes símbolos de soberania régia: o monopólio da cunhagem da moeda. Por isso incluímos a rubrica da falsificação de moeda entre os "Crimes contra o rei a autoridade e a ordem pública".

Comecemos por apresentar, sem mais, as percentagens apuradas. Das 1005 cartas tratadas, 822 (81,8%) são de suplicantes que pedem perdão por um único crime; 108 (10,7%) por dois crimes, 34 (3,4%) por três crimes, 16 por quatro crimes, 12 por cinco crimes, 9 por seis crimes, dois por sete e por oito crimes. Por outras palavras, mais de 4/5 apenas têm um crime na consciência, enquanto 18,2% são reincidentes (alguns por três e mais vezes). Não há nenhuma tabela para estas aferições, mas podemos dizer que, a partir de quatro infracções maiores, estamos perante um homem perigoso (íamos dizer 'um criminoso profissional', mas talvez encorrêssemos em anacronismo, pois há muitos homens de mão de fidalgos que chegam com facilidade à mão cheia de crimes e aquele rótulo adere-lhes mal).

Que crimes? Segundo a nossa tipologia, contámos:

1. Contra a pessoa humana: 546 casos (41,9%); 2. Contra o rei, a autoridade e a ordem pública: 321 casos (24,6%); 3. Contra a 'moral' e os 'bons costumes': 199 casos (15,3%); 4. Contra a propriedade e a 'ordem económica': 169 casos (13%); 5. Contra Deus: 18 casos (1,4%).


O que, lido à primeira, justificaria o nosso subtítulo, que poderíamos até desenvolver: violentos, desordeiros, de alguma forma libertinos e amigos do alheio...mas gente piedosa. O raciocínio é divertido, mas deve ser de imediato matizado. Nada a dizer quanto ao primeiro item. As cartas de perdão reflectem inequivocamente uma criminalidade violenta. Se lhe adicionarmos as 41 agressões a oficiais, durante o exercício das respectivas funções (35 casos), passamos a 587 casos (correspondentes a 45%). O mesmo pode ser dito das 30 violações consumadas ou tentadas. E dos 44 episódios em que um homem fugiu ou foi tirado da cadeia ou dos seus guardas pela violência pura.


Pelourinho junto ao Castelo de Bragança. Além de símbolos da justiça dos Concelhos, serviam para exposição pública dos criminosos onde estes eram açoitados ou supliciados. Há alguns relatos de que podiam servir também para execuções com recurso a garrote mas a documentação sobre isso é escassa.

Chamamos a atenção para o número de homicídios: 250 (19%), dos quais 192 são apresentados secamente ("a ele culparam na morte de"), a que podemos ainda juntar 24 tentativas de homicídio. Igualmente elevada é a quantidade de agressões, com ou sem ferimentos: 22036; 43 delas são cometidas com premeditação, e apesar de haver uma segurança entre o atacante e a vítima.

Um quarto dos crimes ofendem, segundo a classificação que propusemos, "o rei, a autoridade e a ordem pública". Desordeiros? Rebeldes? Em determinadas circunstâncias, sem dúvida. Maus súbditos, desrespeitosos do seu rei? De forma alguma. Neste apecto, o subtítulo que propusemos para esta alínea da nossa tipologia pode induzir em erro: o que faz ou gasta moeda falsa, o que comete perjúrio, o que rasga umas folhas do livro do recebimento das sisas, o que insulta o almotacé, o que traz o gado em total liberdade, sabendo que este provoca prejuízos nas culturas dos vizinhos, o que abafa uma acusação contra si pagando generosa peita, o que foge (ou ajuda a fugir) da cadeia ou da guarda do meirinho, dos homens do alcaide, da escolta, o que pertence a um bando, o que abusa do poder que o ofício lhe dá, o que se vem embora de Ceuta a meio do degredo, o que anda à espadeirada na praça pública - todos estes homens têm consciência de que estão a praticar actos que não são permitidos, que ofendem 'a autoridade' ou perturbam 'a ordem pública'. E que isso lhes pode custar caro. O rei repete sempre e sempre: atacar um seu oficial é como atacar a Coroa; fazer moeda falsa é minar um dos pilares do poder régio; mas eles não o vêem assim; mesmo quando sabem que podem vir a ter problemas com as justiças do rei, não o estão a ofender. Não temos, entre os milhares de casos analisados, nenhum verdadeiro crime de lesa-majestade, de revolta contra a Coroa ou de ofensa directa ao soberano. Estes crimes são "contra o rei" na perspectiva do rei, não na de quem os pratica (mesmo quando estes sabem que estão a cometer um delito).


Também os 15,3% (199 casos) de ofensas à moral e aos bons costumes precisam de algum comentário. Os crimes aparecem regularmente repartidos: 12 casos de adultério 'simples', mais 10 de adultério combinado com roubo - aos quais devem ser associadas as acusações a barregueiras de homens casados (7), a homens que dormem com mulheres casadas, fugindo eventualmente com elas (42), 4 de bigamia, 3 de aborto e infanticídio, 9 de proxenetismo, 3 de jogo. Destacam-se, ainda assim, as barregãs de clérigos - 35 (17,6%), as violações, consumadas ou não - 30 (15%), os 14 casos de incesto, os 9 de feitiçaria associados aos 19 de alcoviteirice; e destaca-se o incitamento ao desrespeito pela família, pelo casamento, pelo senhor: 4 pessoas são acusadas de instigar a mulher a deixar o marido, outras tantas de instigar criados a abandonarem os amos, 10 de convencerem os filhos a saírem da casa paterna.


Quando tratarmos estes crimes em detalhe, veremos que se trata de um campo em que o número negro, isto é, a percentagem de delitos não detectados, é particularmente difícil de estimar.


Comparativamente, os crimes contra a propriedade apresentam números algo baixos: 169 casos (13% do total). Destes, os roubos 'sem mais' (de roupas, de cereais, de armas, de dinheiro, de objectos preciosos, sobretudo de animais) preenchem 74,6% (126 casos). Se lhes juntarmos, extraídos de outras alíneas, 10 casos de adultério com roubo, outros tantos de agressão com roubo e três de roubo e homicídio, chegamos à centena e meia. Que não nos enganem os escassos 12 acusados de contrabando. Quinze casos de fogo posto (8,9%), seis de dívidas, outros seis de destruição de colmeias e abate de árvores: o roubo casa-se com conflitos de gente que vive da terra.


Dezasseis acusações de blasfémia (doze das quais estereotipadas, e seis específicas) podiam dar-nos conta de uma sociedade que respeitava religiosamente - é o termo - os mandamentos da igreja. Sabemos que estava longe de ser o caso: as alíneas anteriores já o demonstraram. Note-se apenas que não possuímos, nas cartas de perdão, qualquer testemunho de outro tipo de crime contra a religião que caia sob a alçada do temporal (heresia, apostasia, etc.), apesar de não nos faltarem cartas régias ordenando aos oficiais da Coroa que prendam frades e monges fugidos dos respectivos conventos e mosteiros que andavam arredios dessas casas. Como não temos qualquer prova documental da actividade de inquisidores, em Portugal, prévia ao estabelecimento formal do Tribunal do Santo Ofício.


"Alcácer" e torre de menagem do Castelo de Leiria, Portugal. No piso térreo dessa fortaleza encontram-se diversas celas onde os presos eram mantidos até julgamento. As condições de espaço e salubridade desses lugares eram horrendos, para não dizer pior.

PRISÃO E APLICAÇÃO DE PENAS:


Na Baixa Idade Média portuguesa, os castigos dependem, em primeiro lugar, dos crimes. Não se trata de uma evidência: se a condenação à morte pode revestir três formas (decapitação, forca e fogueira), isso explica-se pela natureza do crime e pela posição social do criminoso.

Igualmente, para se acusar alguém ou chegar a um determinado veredicto sobre um alegado crime, o ônus não estava tanto sob a apresentação de provas materiais, mas sim nas alegações orais ou escritas de testemunhas. As provas circunstanciais terão o seu lugar nesta lei da prova - mas será um lugar de segundo plano. Nunca lhes caberá a responsabilidade da acusação ou da absolvição: elas decidirão, isso sim, uma mera questão processual: a utilidade de o suspeito ser interrogado sob tortura.

Para a história do direito e da justiça nos países de direito romano, é importante situar a tortura como uma criação do sistema de provas do direito canónico e romano, que se desenvolveu com o processo inquisitorial do "ius commune", no Norte de Itália, no século XIII, para se espalhar pelos restantes reinos da Europa ocidental com o chamado movimento de recepção - e para durar, em alguns casos, até ao século XIX.

Só se entende a utilização da tortura percebendo qual era o sistema de provas do direito romano-canónico (para crimes graves, susceptíveis de implicarem penas corporais), e que, muito resumidamente, comportava três regras básicas:

1. O suspeito podia ser condenado mediante os depoimentos de duas testemunhas oculares;

2. Na ausência delas, podia sê-lo mediante a sua própria confissão;

3. Sem os primeiros nem a segunda, a condenação tornava-se quase impossível: por mais gritantes que fossem as chamadas provas circunstanciais, os indicia, nenhum juiz ou tribunal podia pronunciar um veredicto de "culpado" só com base nelas.


Percebemos agora melhor por que razão os juízes se preocupavam muito pouco em reunir este tipo de provas; para acusar bastava um rumor, um "ouvir dizer"; para condenar, era preciso muito mais. Quer dizer, não podia ser condenado...a menos que confessasse. Está aberta a porta para que a tortura possa fazer a sua entrada em cena. Não havendo duas testemunhas oculares, não havendo confissão voluntária do suspeito, mas havendo bons motivos para alicerçar a suspeita, o juiz podia ordenar o emprego da tortura. Que "bons motivos" eram esses? A existência de uma única testemunha ocular - que seria considerada "meia prova" ou de fortes indícios circunstanciais: no exemplo acima, a arma sangrenta e as coisas roubadas podiam ser contadas como "um quarto de prova" cada. E procurava-se que a aplicação da tortura recaísse apenas em pessoas com alta probabilidade de terem cometido o crime.


Como se passavam as coisas em Portugal? Desiluda-se quem esperava encontrar aqui descrições sinistras. Os documentos que estudámos autorizam-nos apenas a falar numa modalidade de tortura: os açoites. As cartas de perdão alternam quase indistintamente as expressões "tormento" e "tormento de açoutes"; talvez houvesse outros processos: espancamentos, ingestão forçada de água (recordemos que um homem acusou Pedro Caldeira, alcaide de Marvão, de o ter forçado a beber um cântaro de água por uma albarda); em 1514 um juiz de fora de Coimbra ameaçou a viúva do almocreve, presumível co-autora do crime, de a submeter ao polé. Mas é a primeira vez que ouvimos falar no instrumento. Os açoites eram quase sempre aplicados a ladrões comprovados (para que eles confessassem outros furtos além do que tinha sido testemunhado) ou hipotéticos; e a presumíveis falsificadores de moeda.


Acesso às celas do Castelo de Palmela. O tamanho das celas nos castelos era diminuta, apenas tinham espaço para que alguém se deitasse ou estivesse de pé, e por vezes não ambas.

No chão, a entrada para as celas.

PRISÃO:


Trata-se de um assunto ideal para operarmos a transição do funcionamento das justiças para as penas. Porque, e este aspecto deve ficar bem claro, na Baixa Idade Média a cadeia quase nunca é uma pena, é um modo de ter um acusado ou um condenado à disposição da justiça (para garantir que vai a julgamento, ou que cumpre a sentença, respectivamente), castigar um culpado, infligindo-lhe um mal equivalente ao que ele causou à vítima ou à sociedade; proteger a comunidade de uma pessoa considerada perigosa. Corrigir, reeducar e reintegrar um delinquente, nenhuma destas três finalidades está presente no espírito de um magistrado medievo, quando manda prender alguém.

Repare-se: a vocação correctiva é relativamente recente; a reparação das vítimas consegue-se mais eficazmente por outros meios; e se a intenção é proteger a sociedade de um homem perigoso, manda-se o indivíduo para o Norte de África ou para as ilhas (pena de degredo), ou, para maior segurança, para o outro mundo, pendurando-o numa forca ou degolando-o.

A cadeia é terrível, causando um acentuado sofrimento físico e deixando de rastos a honra de quem por lá passa. Mas o mesmo acontecia com a tortura; objectivamente castiga, mas não é concebida como um castigo. Trata-se apenas de uma diligência judicial, para impedir a fuga de acusados ou de sentenciados, como foi dito. Era também usada frequentemente para pressionar os devedores a pagarem as dívidas (ou condenados a satisfazerem as multas); dizia-se então que alguém era obrigado a pagar a "emenda" ou as custas "da prisão". Trabalhámos com documentos nos quais se dava conta de decisões judiciais no sentido de o acusado "ter a prisão por pena": tal sucedeu nos casos em que um suspeito esteve detido por uma longa temporada.


No final, os juízes libertavam-no, e consideravam que o tempo que ele padeceu no cárcere funcionaria como o castigo do seu crime (a cadeia era, a posteriori, convertida em pena).


Mas desengane-se quem pense que as cadeias eram um lugar seguro para colocar os marginais, a fuga de prisões era muito comum, exemplos temo-las aos milhares, imaginativas, surpreendentes, tragicómicas, violentas, anódinas - eficazes. Quando se acaba a leitura de um volumoso corpus de cartas de perdão, a primeira impressão é nítida: fugiam todos. Homens ou mulheres, velhos ou novos, criminosos 'duros' ou pequenos contrabandistas...as cadeias medievais eram verdadeiros 'passadores'.


Não nos espantemos de ver os próprios presos justificaram a evasão "por maa guarda que se em a dita prisom puynha". Nem a cadeia da Corte, em princípio mais vigiada, custodiando alguns presos perigosos, era segura: há fugas em massa de lá, esteja ela em Lisboa, em Évora ou em Santarém. Há ataques à cadeia da Corte. E há uma fuga colectiva espectacular quando os presos, devidamente guardados, eram trazidos de Santarém para Lisboa numa barca, pelo rio Tejo, e se amotinaram no meio do rio, ferindo os oficiais que os acompanhavam e logrando evadir-se. Mas se as fugas eram recorrentes também o seu perdão o era, a relativa facilidade com que o rei perdoava as fugas da cadeia (com ou sem multas, quase sempre reduzidas), trocando-as por cartas de segurança era outro factor que levava os presos a tentarem a sua sorte.


OS EDIFÍCIOS DAS PRISÕES:


Podemos encontrar prisões propriamente ditas, isto é, espaços concebidos de raiz ou adaptados para receberem presos. Onde há castelos, a prisão fica sempre dentro da fortaleza: numa das torres - casos de Braga e de Ponte de Lima, entre muitos; numa antiga cisterna reaproveitada, ou numa das casas construídas dentro, adossadas à muralha; em localidades sem castelo mas com muralhas (como o Porto), a casa da cadeia será forçosamente intra-muros. Como acabámos de ver, nesse caso o carcereiro pode deixar os presos vaguearem pelo pátio, garantindo previamente que todas as portas estão fechadas (em tempo de paz, aí está uma garantia difícil de verificar). Os estabelecimentos religiosos mais poderosos tinham as suas próprias cadeias, como os temidos cárceres do Mosteiro de Alcobaça, conhecidas por serem terríveis enxovias.

As localidades mais importantes afectavam para o efeito uma construção desocupada: normalmente um pardieiro, uma casa em ruínas, submetida a reparações mínimas.

Em segundo lugar, havia o que designaremos por prisões "ad hoc", isto é, a Casa da Câmara, a residência de um juiz ou de um vereador, o paço de um fidalgo - edifícios que, excepcional e temporariamente, podiam receber um detido por uma noite ou algumas horas. E que, logicamente, não disfrutam de quaisquer condições de segurança. Entre os primeiros e os segundos, uma espécie de meio termo: as casas do alcaide-pequeno ou do carcereiro. Não são exclusivamente prisões, também não são apenas habitações: reunem, melhor ou pior, as duas funções. Se têm rés-do-chão e andar, os detidos ficam em baixo, o guarda no sobrado por cima deles.


A PENA CAPITAL:


Não é preciso avançar muito pelo Livro 5 o das "Ordenações Afonsina" para encontrar um parágrafo que feche com duas ou três palavras sinistras: "moira porem" ou "moira por ello". Os que fazem "treiçom ou aleive" contra a Coroa devem "por ello morrer naturalmente de morte cruel". Como os que fazem moeda falsa; os violadores (ainda que casem com a mulher forçada) ou aqueles que os ajudarem; os adúlteros; os que casam ou têm relações sexuais com parentas ou mancebas daqueles com quem vivem; a mulher casada que abandona a casa do marido para praticar adultério (morrerá ela e o cúmplice); os bígamos; os sodomitas; o cristão ou cristã que se envolverem sexualmente com mouros ou judeus; os que matarem alguém sem razão, na Corte ou fora dela; os que falsificarem sinal ou selo do rei; os feiticeiros; os ladrões; os que quebram um degredo perpétuo; os que atacam outro em vindicta; os que tiram da prisão detidos que estão à guarda do carcereiro, e que para tal danificam a casa; os que, de propósito e conselheiramente, levantam em juízo contra as justiças.


Vistoso rol que contrasta flagrantemente com a penúria das execuções capitais de que temos conhecimento: penúria em quantidade e em variedade. Chegam-nos informações directas de muito poucas execuções e quase todas pela forca. Mas então e as fogueiras que deviam ter abrasado sodomitas e moedeiros falsos, que é delas?


Se as houve, não sabemos. Pelo que depreendemos que as não houve. E os demais processos de execução que povoam os documentos medievais franceses e ingleses e as da nossa imaginação? Os enterrados vivos? Os afogados? Os queimados num caldeirão de água e azeite a ferver?...em Portugal, não.


PENAS CORPORAIS:


Que as havia, havia, violentas e relativamente frequentes: não são excepcionais as agulhas de albardeiros enfiadas na língua dos blasfemadores; sabemos que os ladrões podiam ser total ou parcialmente desorelhados. Em 2 de Janeiro de 1500, em Beja, é passada uma certidão a um lavrador de como prendera um moço de soldada castelhano, acusado do roubo de três cabeças de gado. Uma testemunha ocular, Iria Gonçalves, traz-nos imagens de Lisboa; "...Quem passasse no largo e olhasse em direcção à picota (pelourinho), facilmente poderia ver alguém "metido no colar", ou um moço "meor de ydade", pregado pelas orelhas. Esse teria, talvez, roubado uvas no termo. Mas o transeunte podia ainda encontrar umas mãos humanas, ali deixadas como despojo ensanguentado de uma sentença de decepamento. E haviam ficado para exemplo de todos." Talhamento de mãos, de orelhas...E de língua? Ou de pés? Ou de narizes? Até há pouco não possuíamos qualquer prova documental, directa ou indirecta, de que tenham existido, no entanto, escavações recentes em Estremoz, no Alentejo, mostraram valas comuns com esqueletos do século XIV cujos mãos e pés foram cortados por uma lâmina, provavelmente de espada ou de machado, ao que os arqueólogos suspeitam terem sido de condenados à morte. Se esse talhamento dos membros foi feito antes ou depois da execução da pena, não se sabe.


Muitas destas execuções decorreriam no pelourinho. Luís Chaves descreve-o como "uma coluna sobre alguns degraus, munida de braços de ferro, de ordinário quatro, com argolas pendentes, ou de correntes seguras no meio do fuste da coluna a uma argola que a abraçava; servia à maneira gaulesa para expor os criminosos às vaias públicas do concelho, colectivamente atingido pelo delito. Primitivamente os pelourinhos tinham sobre o fuste, provavelmente de menor altura, - pelo menos a altura de homem - uma gaiola onde eram submetidos à pena de exposição os réus; a gaiola passou depois a simples miniatura de remate, sem aplicação utilitária, acabando por se estilizar e modificar nos outros coroamentos que se lhes sucederam. Passaremos rapidamente sobre o assunto, uma vez que nada de novo encontrámos: Gonçalo Gonçalves, morador no julgado de Penalva, fora preso por, numa inquirição-devassa conduzida no julgado, algumas testemunhas terem dito que "renegara de Deus e de Santa Maria sua madre e dos seus santos e que era tafull e jogador de dados"; na terra foi absolvido, considerando-se a cadeia onde estivera como pena bastante. Mas quando a apelação chegou à Corte, o rei entendeu que "nom era bem julgado", e ordenou "que lhe desse vinte açoutes ao pelourinho". Sabe-se que o pelourinho era o símbolo por excelência da jurisdição municipal. Podia ser um dos locais de afixação de documentos que se pretendia tornar públicos. Já se disse que podem ter servido para enforcar, mas que era sobretudo utilizado para expor os condenados ao escárnio geral, ou para os imobilizar enquanto eram açoitados ou sofriam uma mutilação.


Nas terras da Igreja era aplicada a justiça eclesiástica, na mesma forma que nas honras ou mansos existia a justiça senhorial, estas eram completamente autónomas, excepto num ponto: a pena capital. Só o rei podia decretar pena de morte a alguém ou, pelo contrário, perdoar essa sentença anteriormente dada. Geralmente havia sempre um período de tempo entre a decisão e a aplicação da sentença para dar tempo ao monarca de repensar a sua decisão. Esse período de "nojo", digamos assim, foi estipulado pela primeira vez nas Leis gerais do Reino de Afonso II em 1211. Quanto ao resto das penas podiam ser aplicadas por quem tivesse o privilégio da sua aplicação nas suas terras. Por exemplo, o Mosteiro de Alcobaça tinha celas prisionais verdadeiramente aterradoras, autênticas enxovias temidas tanto pelos monges como por todos os que viviam no seu couto.


Uma observação importante: como o Luís Miguel Duarte observa, apesar de muito raros e de serem em maior número e violência para os séculos XIV e XV, temos indício do uso de pena capital de forma mais exuberante por parte das justiças senhoriais (do muito pouco que restou). Rosa Marreiros, no seu trabalho sobre a justiça na Amarante medieval (sob a autoridade da Ordem do Hospital) descobriu alguns casos como o do sodomita mouro condenado à fogueira durante o reinado de D. Dinis. Para além disso, também temos o famoso caso relatado em Fernão Lopes, no capítulo IX da "Crónica de D. Pedro", da esposa do mercador Afonso André, que foi condenada à morte na fogueira e executada por adultério... enquanto o marido andava nas justas na Rua Nova dos Mercadores.


Mais uma observação: em finais da Idade Média, outra prerrogativa do rei era o direito a ouvir apelos e agravos dos habitantes do senhorio. Por outro lado, a prisão não era propriamente uma pena na maioria dos casos até bem entrado o século XIX.


- Pedro Alves.


FONTES DOCUMENTAIS:


- "Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo, 1459-1481". Volume I / Volume II / Volume III. (Luís Miguel Duarte). Porto, 1993.


- "Estudo económico no Livro das Posturas Antigas", Curso: Mestrado em Estudos Medievais; Unidade Curricular: Economia e Sociedade; Discente: Vitor Manuel Inácio Pinto; Docente: Professor Doutor Luis Miguel Duarte. (2014).


- O DIREITO VISIGÓTICO, Luiz Carlos de Azevedo. Professor Associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.


- "Crime and Punishment in the Middle Ages", Albrecht Classen, Coonie Scarborough, Edições De Gruyter.



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