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Interrupção voluntária da gravidez na Idade Média

  • Foto do escritor: InfoBlog de JD
    InfoBlog de JD
  • 2 de jul. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',

Interrupção voluntária da gravidez (IVG) na Idade Média: condenada ou permitida ?

Uma ilustração de uma IVG, vinda de um manuscrito do século XIII do “Herbarium” de Pseudo-Apuleius.

No imaginário popular, a Idade Média é frequentemente associada a uma espécie de “Idade dos Monges”, ancorando-se tanto tradicionalistas como progressistas nessa visão do período para construir as suas identidades em oposição ou procura dessa Idade Média, distorcendo-a assim no processo das guerras culturais contemporâneas. Isto vale também para questões ligadas à mulher e à actividade sexual, sendo que hoje apenas falaremos da (sempre complexa) problemática do aborto. Ao contrário do que se possa pensar ou dizer sobre o tópico, apesar de geralmente condenado pelo clero, o abortamento podia ser socialmente aceite sobre certas condições e mesmo os tratados do clero podiam admitir atenuantes.


Comecemos pelas visões clericais condenatórias. Já no século VI, no Concílio de Braga de 572, a prática do abortamento de filhos, independentemente de terem sido concebidos dentro do matrimónio ou não, era já condenada, e mais tarde os penitenciais medievais continuaram a condenar tal prática, impondo o “Trautado da Comfissom” 1 a 3 anos de penitência pelo pecado em finais do século XV. A questão era complicada pela perene questão perene (ainda hoje levantada pelos Católicos) de se saber quando o feto adquiria a sua alma, pois o abortamento seria nesse caso uma condenação da criança, que estaria impedida de aceder à salvação eterna. Para S. Tomás de Aquino, na sua “Summa Theologiae”, a alma era formada por Deus aquando da gestação humana, mas sem ser claro quanto à cronologia; já os tratados médicos tardo-medievais estabeleciam um período de 60 a 70 dias, enquanto outras fontes consideravam os 40 dias ou até a formação dos membros. Só no século XVI apareceria a posição “tradicional” de que a vida começava aquando da conceção…


Por outro lado, os mesmos clérigos poderiam admitir atenuantes, nomeadamente o estado de saúde da progenitora e até, no caso de Burchard de Worms (século XI) o seu estatuto socioeconómico. Para além disso, vários deles deixaram registadas várias mezinhas que, apesar de serem indicadas para contracepção (!), também poderiam ter efeitos abortivos. Tal provável identificação é reforçada pela frequente equivalência medieval entre contracepção e abortamento como formas de homicídio em alguma literatura clerical, assim como, no caso da obra do misterioso Pedro Hispano, pelo facto de afirmar que alguns poderiam servir para “trazer a menstruação” (um eufemismo?), mas também não deixa de ser possível que tal silêncio directo sobre o tópico nos livros de farmacologia reflicta a moral clerical prevalente na maior parte dos autores devido ao seu “background”. Exemplos de fórmulas usadas incluem a raiz da açucena ou óleo de rícino, para não falar dos amuletos e talismãs: apesar de virem de tratados médicos, podem perfeitamente ter origens populares.



Já a visão do resto da sociedade pode ser mais difícil de reconstruir devido à natureza das nossas fontes, mas mesmo assim podemos chegar a algumas conclusões. de forma mais geral, podia aceitar a questão de um modo muito mais pragmático do que estaremos dispostos a pensar, especialmente em caso de risco de vida para a mãe.


Ao invés do que se passava no reino godo de Toledo, onde a interrupção voluntária da gravidez (IVG) era crime na “Lex Visigothorum”, ou ainda nos reinos francos alto-medievais, na Baixa Idade Média a escolha era principalmente da mulher (pelo menos a um nível teórico) e no Portugal medieval o direito visigótico parecia cair em saco roto, como aliás caía em boa medida na Alta Idade Média: a legislação alto-medieval era principalmente uma declaração ideológica, mas mais não seja pela constante repetição das leis que indica um desrespeito social pela norma imposta pelo poder político.


Aliás, a este propósito há uma história muito curiosa é contada por Frei João Álvares no seu “Trautado da vida e feitos do muito virtuoso Sor Ifante D. Fernando”: de acordo com o frei jerónimo, a mãe do famoso Infante Santo, a rainha Filipa de Lencastre, estaria doente e com febre aquando da gravidez deste filho. Como a continuação desta parecia inviável sem enormes riscos de morte, o próprio D. João I (provavelmente por conselho dos seus físicos) decidiu dar um abortivo à sua esposa, mas Filipa recusou quando o rei português lhe ofereceu a possibilidade de interromper a gravidez, alegando que a sua vida e do seu filho estavam nas mãos de Deus. Com tal prova de devoção, João I… acabou por deitar o abortivo ao chão! Mesmo que a história fosse apócrifa, e julgo que não há grandes motivos para crê-lo “a priori”, só demonstra como a sociedade, pelo menos a nível da nobreza tardo-medieval, tinha uma atitude um pouco distanciada das opiniões mais radicais dos clérigos, mesmo numa corte devota como a joanina e dificilmente puniria as mulheres que tivessem de abortar, aceitando tal realidade como possível ou até inevitável em certas circunstâncias.


Ilustrações medievais do interior do útero e das posições do feto.

Fontes usadas:

- Aquino, Tomás de Aquino. “Summa Theologiae”, Q.18, Art. 1-2.



- Marques, A. H. de Oliveira (2010). “A Sociedade Medieval Portuguesa”. Esfera dos Livros, Lisboa, 6ª edição, p. 131.


- Oliveira, Ana Rodrigues (2015). “O Dia-a-dia em Portugal na Idade Média”. Esfera dos Livros, Lisboa, pp. 21-24.


- Zubin, Mistry (2011). “ ‘Alienated from the womb‟: abortion in the early medieval West, c.500-900”. Dissertação de Doutoramento apresentada ao King’s College of London, pp. 88-94 e 164-183.

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~ José




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