Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',
Actualizado em 09/11/2021 por Pedro Alves.

Republicamos um artigo em duas partes que já tivemos ocasião de partilhar há alguns anos, mas que infelizmente não foi ainda suficiente para debelar muitos dos mitos que persistem na narrativa popular acerca da suposta falta de higiene pessoal dos nossos antepassados medievais. Afinal, tomavam ou não banho regularmente? Como se lavavam? E a higiene pública: era ou não uma prioridade?
Se a gestão do lixo doméstico não era tarefa fácil, a higiene pessoal era, no entanto, melhor do que se acredita actualmente. As pessoas tomavam banho, lavavam os cabelos e os dentes diariamente, em muitos casos. As epidemias de peste bubónica a partir de finais do Medievo também reforçaram a ligação que já se fazia entre a higiene e a saúde - apesar do declínio dos banhos públicos em inícios do século XVI, como veremos na segunda parte. Produtos de banho como o sabão ou o champô, e até a escova e pasta dentífrica já eram usados.

O sabão circulava entre nós desde a Idade do Bronze, vindo da Mesopotâmia, e os Romanos comentavam que as tribos da Idade do Ferro usavam-nos frequentemente. Plínio "o Velho", em jeito de troça, menciona que nesse período os homens costumavam utilizá-lo até mais do que as mulheres. A partir do século XIII, o sabão passou a ser recomendado pelos médicos como benéfico para a pele. Desta forma, a sua utilização no banho generalizou-se. O sabão de Alepo feito com azeite e óleo de bagas de louro foi trazido para a Europa pelos Cruzados e depressa se tornou popular.

Na Península Ibérica, a presença islâmica favoreceu o fabrico de sabão feito com 100% de azeite, mais tarde chamado ‘sabão de Castela’, que tinha uma qualidade superior à dos sabões produzidos exclusivamente a partir de gordura animal (principalmente sebo, mas também óleo de peixe).

Os preceitos de higiene levam-nos muito naturalmente a falar de receitas de beleza. Conhecem-se muitos deles: desde os unguentos e cremes à base de banha de porco, azeite, leite de amêndoa, plantas maceradas ou fervidas no vinho (como malvas, violetas, folhas de salva, etc.), até aos perfumes à base de almíscar ou mesmo tintas para pintar o cabelo. Sobre este assunto foram escritos tratados como o "Ornatus Mulierum" (Ornamento das Damas) onde encontramos receitas para evitar as rugas, tratar as tinhas do corpo, branquear os dentes e tornar espessos os cabelos. Contra essas “vaidades” repreendeu Étienne de Fougéres, bispo de Rennes no século XII, num poema que lhe foi atribuído:
"Das damas e das moças, Das cortesãs e das servas, Se faz, de mulheres feias, belas, E das putas se faz pucellas (virgens)".
BANHEIRAS E LAVA-MÃOS:
As casas mais humildes não dispunham de banheiros, mas mesmo assim havia cubas de madeira chamadas "solhas", grandes o suficiente para uma pessoa. A água era aquecida numa lareira e depois vertida para a “solha”, sendo-lhe adicionadas plantas aromáticas para obter um odor mais agradável. As Crónicas de Froissart descrevem a bacia de banho feita de ouro e prata no mobiliário do Duque da Borgonha em 1382, mas nem todos eram tão afortunados, já que, dependendo das suas posses, as banheiras seriam de metais menos nobres ou de madeira, como descrito acima.
Para os quem nem sequer possuíam uma “solha”, a alternativa eram os rios, lagos ou o mar - isso para quem não se importava de água fria - mas avaliando os textos da época era uma prática bem recorrente, como afirmam o trovador galego Martín Codax ou o português Estêvão Coelho: “Se hoj’o meu amigo/ soubess’, iria migo:/ eu al rio me vou banhar.” Aliás, as próprias lavagens dos cabelos adquiriam nas cantigas trovadorescas um pendor erótico, como se vê no famoso “ciclo dos cervos” de Pêro Meogo.
Para lavar as mãos, nomeadamente entre a nobreza, eram usados gomis e bacias, antes e depois das refeições. Na sua obra "As Sete Partidas" (1256-1265), o rei castelhano Afonso X aconselha a que se lavem as mãos e depois se limpem a uma toalha e não à roupa.

HIGIENE DENTÁRIA:
A limpeza oral era particularmente importante para as mulheres, e pese embora já se conhecessem dentaduras postiças, elas temiam bastante a perda de dentes. De resto, só havia uma solução para dentes cariados: serem tirados a sangue-frio ou com anestesia (os opiáceos com efeitos sedativos também já eram conhecidos).
Esclarecendo que, contrariamente a outro mito comum, os barbeiros nem sempre faziam as vezes de dentista ou cirurgião na Europa medieval. Isso era especialmente verdadeiro em Portugal, onde apenas 1% dos cirurgiões - os principais responsáveis pela saúde oral - estudados até agora eram igualmente barbeiros. Finalmente, para evitar chegar a esse ponto, fazia-se o mesmo que hoje: escovar os dentes com pasta dentífrica depois das refeições. As escovas eram feitas de madeira ou osso, e pêlos de rafia, sendo que as pastas continham uma mistura de rosas e cinzas de alecrim, um componente abrasivo.

DAR BANHO AO BÉBÉ:
No século XIII, Bartolomeu “o inglês”, Vicente de Beauvais e Aldobrandino de Siena escreveram tratados de medicina e educação onde referiram todos os preceitos para a higiene das crianças, descrevendo os pormenores do banho do bébé: três vezes ao dia, quais as horas, qual a temperatura da água ideal e recomendou que se lhes dessem banho perto da lareira no Inverno, para não se constiparem.

LATRINAS:
Mais uma vez, as gentes humildes não tinham latrinas em casa, mas podiam encontrar-se nos mosteiros, palácios e castelos. Colocadas o mais afastadas possível dos quartos e salas interiores e fechadas com portas duplas para reduzir o cheiro, as latrinas tinham apenas uma tampa de madeira a tapar um buraco por onde os dejectos caíssem directamente para a rua. Noutras ocasiões colocava-se um balde debaixo do buraco e quando este enchia era despejado.

Nota de JD: Veja este artigo postado anteriormente neste blog: A história da Latrina. |
OS BANHOS PÚBLICOS:
Tomar banho raramente foi (ou é) apenas um gesto utilitário, exclusivamente destinado à limpeza do corpo. Ritual voluntário e espontâneo ou forçado e imperativo, popular e simples ou sofisticado e complexo, dota-se, no decorrer dos tempos, de contornos e significados múltiplos. As transformações da Antiguidade Tardia e mais tarde o colapso da autoridade romana na metade ocidental do Império Romano levaram ao fim dos banhos públicos monumentais da época romana, substituídos por banhos mais modestos frequentemente ligados a estruturas palatinas e eclesiásticas, mas que mesmo assim não desapareceram durante o período medieval. Esta situação não era necessariamente negativa, pois os banhos romanos eram conhecidos por serem altamente perigosos para a saúde, levando até físicos clássicos a recomendar que doentes com feridas não deveriam ir aos banhos ou sofreriam de gangrena, por exemplo.

Assim, no mundo carolíngio, os palácios rivalizavam em salas de banho com os mosteiros, que muitas vezes tinham ambulatórios para doentes e funcionavam como hospitais. Em Paris, em 1292, havia 27 banhos públicos registados, e eram regulados desde 1268, por iniciativa de Luís IX. Nos séculos XIV e XV, os banhos públicos tiveram um verdadeiro apogeu na Europa Central: Bruxelas, Bruges, Baden, Dijon, Digne, Rouen, Strasburgo, Chartres... grandes ou pequenas, as cidades tinham-nos em quantidade, embora em finais do século XV e inícios do XVI tenham entrado finalmente em decadência. Já na Península Ibérica, sob o domínio islâmico, o banho foi uma prática extremamente popular e não apenas pelas obrigatórias cinco abluções diárias que asseguravam o estado de pureza imprescindível à maioria dos actos rituais.
A função social que cumpriam foi igualmente determinante para a população em geral. Entre os estratos mais elevados da sociedade os banhos atingiram um elevadíssimo nível de sofisticação, constituindo não só um momento fundamental da vivência cortesã como integrando, no ciclo restrito das elites governantes, o protocolo oficial.
Em número variado, por forma a servirem a totalidade dos bairros, localizavam-se preferencialmente junto às portas da Almedina (como os banhos régios cedidos por Afonso Henriques em 1131 aos crúzios para ali construírem o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra) ou nas artérias mais centrais, sempre em pontos onde o abastecimento de água estivesse assegurado. Diferenciados por sexo ou oferecendo turnos distintos para homens e mulheres (embora nem sempre se verificasse a segregação por sexo), os banhos tomavam-se cobertos por panos de linho podendo, de acordo com a maior disponibilidade económica, dispor do auxílio de um criado que transportasse os baldes de água e massajasse o corpo com unguentos, usando-se para tal cubículos mais ou menos privados.

Em clara ultrapassagem dos preceitos religiosos e claramente inscritos nos códigos de sociabilidade, por entre distracções e cantares, os banhos públicos associavam ao prazer da água e do vapor o costume de comer e a prostituição, fortemente condenados na perspectiva clerical. Assim, a linha que separava o simples prazer da água e da convivialidade da volúpia e licenciosidade era por vezes muito ténue, demasiado ténue na perspectiva do Clero. A proibição que a Igreja fez incidir sobre o banho misto terá tido uma aplicação relativa, podendo comprovar-se um pouco por toda a Europa, sobretudo no centro, norte e leste onde os rigores do clima tornavam as estufas particularmente procuradas e banais. Aliás, das assimetrias culturais norte-sul é prova a surpresa de Poggio Bracciolini, secretário do papa João XXIII, quando em 1416 esteve em Baden, na Alemanha.

A descrição que deixou dos banhos públicos, mistos e abertos a todos, da nudez completa ou das roupas ligeiras, de como assim cantavam, comiam e jogavam numa convivialidade inocente, expressa bem como de todos os presentes, o italiano era o único a quem tal causava assombro e agitação. Aferindo como, pese embora o movimento registado no decorrer dos séculos XIV e XV a favor da separação de sexo, tal nunca se tornou uma prática universal. Em muitas situações, porém, estabelece-se uma regra de alternância, fixando-se dias ou horas para cada um dos sexos. Na Península Ibérica é provável que a separação fosse a prática mais comum: aparece discriminada nos foros de Valência e de Úbeda, bem como nos Foros e Costumes de Riba Côa – reservavam-se os domingos, terças e quintas para as mulheres, os restantes dias para os homens. A esta situação era acrescida uma separação frequente por comunidades religiosas. Judeus e muçulmanos tinham muitas vezes os seus próprios banhos, mas onde estes não existiam era comum (mas não obrigatório) haver dias específicos para essas minorias.





Quanto ao posicionamento da Igreja, neste como em muitos outros aspectos relativos à conduta do homem o seu discurso no decorrer da longa Idade Média esteve longe de ser uníssono, menos ainda linear. Se por um lado os banhos públicos eram vistos com desconfiança pela moral Cristã por serem locais associados à luxúria e à gula, como já tivemos ocasião de verificar, por outro a sua utilidade terapêutica durante boa parte do período medieval não deixou de ser reforçada por vários tratados eclesiásticos e a tolerância perante um uso controlado ou, sobretudo, se justificado por razões de saúde, aspecto particularmente evidente nas regras de Santo Agostinho e São Bento: se o primeiro recomenda o banho aos enfermos, mesmo que contra a vontade do próprio, o segundo é mais perentório, contrapondo a frequência com que deve ser dado aos doentes com a escassez de uso permitida aos que gozam de plena saúde, particularmente quando jovens. Fique mais uma vez a ideia de uma certa desconfiança destas ordens monásticas e uma certa repulsa pelos banhos. Para além disso, a ideia de que os banhos aliviavam a tristeza e melancolia, causas principais de todas as doenças prolongadas, manter-se-ia por toda a Idade Média, dela voltando a fazer eco Tomás de Aquino ou, entre os clérigos portugueses, Frei Paio de Coimbra, para quem o equilíbrio do corpo dependia da contenção alimentar, do exercício e da frequência dos banhos.


O banho público era tratado em pé de igualdade com tarefas tão comuns e essenciais ao quotidiano como moer o cereal, cozer o pão, lavar a roupa ou ir buscar água à fonte. Um outro indicador de que a prática do banho tinha suficiente procura era o facto de constituir um negócio lucrativo e cobiçado. Por isso, interessava aos poderosos: Em Portugal, no foral de Loulé outorgado em 1266, D. Afonso III fez questão de mencionar que a exploração dos banhos era reservada à Coroa. Já em Setúbal, em 1341, o Mestre de Santiago procurou garantir para si o monopólio dos banhos. Nem mesmo o clero secular e regular rejeitava o investimento, por muito que condenasse a prática, um pouco também como acontecia com as casas da barregania: dos três banhos existentes em Évora, um, pelo menos, era propriedade do Cabido da Sé. Em Lisboa, no ano de 1392, o direito de administração de uns banhos em Alfama é a razão de uma contenda entre os monges do Mosteiro de Alcobaça e o Senado da Câmara, sendo a posse dos ditos reivindicada pelos Cistercienses.

Equipamentos de sucesso, portanto, o que se explica pela componente social que lhes estava associada, sobretudo na esfera do quotidiano feminino. Porque a água era em primeiro lugar um prazer, o banho tornou-se ou simplesmente continuou a ser um momento fundamentalmente lúdico, festivo e partilhado. Com os corpos total ou parcialmente imersos em água quente, conversava-se, ouvia-se música, bebia-se vinho e ingeriam-se alimentos vários.


LIMPEZA NOS MOSTEIROS E SANEAMENTO URBANO:
As informações sobre higiene na Alta Idade Média vêm principalmente dos monges que prescreveram sobre os costumes da vida monástica, embora seja mais difícil de avaliar a relação entre o que está nas Regras e a realidade prática. A Regra 53 de São Bento, por exemplo, exige que os hóspedes e convidados do mosteiro tivessem suas mãos e pés lavados assim que chegassem ao mosteiro: “Que o Abade sirva a água para as mãos dos hóspedes; lave o Abade, bem assim como toda a comunidade, os pés de todos os hóspedes”. Contudo, aqui, mais do que higiene, tratava-se de um acto de caridade, imitando Cristo. Este segundo plano também se aplicava aos próprios monges, que cortavam o cabelo ou a barba e faziam a limpeza das mãos e roupa como hábitos disciplinares.
No caso dos banhos, a situação era complicada por se considerarem estes como oportunidade para tentações pecaminosas. Mesmo assim, apesar de tal desconfiança, São Bento prescreveu, na sua Regra 36, o banho aos monges doentes: “O uso dos banhos seja oferecido aos doentes sempre que convém”. No mosteiro Suíço de St. Gall, no século IX, banhos eram oferecidos na enfermaria e no claustro. Em Cantuária havia banhos tomados três vezes por semana e antes de alguma celebração eucarística do calendário litúrgico como a Páscoa, o Pentecostes, o Natal ou a Quaresma, estes eram tomados em clima de solenidade e austeridade: solitários, silenciosos e rápidos… Nada de permanecer no banho por prazer.
Fossem tratados de medicina ou de higiene geral, na época recomendava-se o asseio às mulheres e São Jerónimo condenava já as religiosas que confundem santidade com sujidade! E algumas regras recomendavam às monjas que se lavassem tanto quanto quisessem e tivessem necessidade. Chama-se à atenção, aqui e ali, para alguns conselhos de limpeza dados às mulheres: lavar todas as manhãs as mãos, os braços, a cara, ter atenção às unhas e dentes: ter aquelas sempre "limpas, brunidas e esfregadas"; lavar a cabeça com frequência e pentearem-se bem. Mesmo assim, tal opinião não era uniforme, nomeadamente entre os eremitas e as ordens mendicantes tardo-medievais, onde a falta de limpeza podia ser mais um meio de ascese: paradigmático deste modelo é a Princesa Santa Joana (1452-1490), que segundo a sua hagiógrafa usava a mesma roupa durante meses a fio, apesar das infestações de piolhos resultante.

LIMPEZA URBANA:
Antes de mais, chamar a atenção que a gestão do lixo e dos resíduos domésticos não era tarefa fácil. O sistema romano de esgotos urbanos tinha entrado em colapso com o fim do Império no Ocidente europeu e passaram alguns séculos até voltarem a ser reutilizados ou novos esgotos abertos. Por outro lado, o Império Romano no Oriente tinha mantido um nível aceitável de saúde pública, embora este quadro seja verdadeiro sobretudo para a cidade de Constantinopla. Na Península Ibérica, o domínio islâmico significou o regresso da preocupação com o saneamento básico urbano, mas mesmo assim apenas em cidades maiores e mais importantes como Córdova, Granada ou Sevilha.
Podemos encontrar um exemplo de reutilização de antigos esgotos romanos pelos muçulmanos precisamente no claustro da Sé Catedral de Lisboa (cujas obras tanta polémica têm dado), onde a antiga cloaca manteve a sua função de saneamento básico no conjunto urbano islâmico e onde também foram encontradas fossas detríticas do século XI e inícios do século XII num local associado a anteriores estruturas também originalmente romanas. (ver catálogo editado pelo Museu Nacional de Arqueologia: “Portugal Islâmico: Os últimos sinais do Mediterrâneo”). Já nas cidades mais pequenas, os esgotos estavam reservados a espaços públicos específicos ou das classes mais ricas: palácios, castelos e mesquitas. Mesmo assim, a higiene pública e o saneamento continuavam bastante precários, e se já a rede de esgotos romana era muito deficitária em termos de saúde pública, a situação não era muito melhor na Idade Média.
Quando os esgotos existiam, como em Londres, eram a céu aberto e os despejos domésticos lançados para a via pública ou em cursos de água, se estes estivessem próximos. Até mesmo as latrinas de castelos, mosteiros, casas de nobres ou mercadores abastados, se as tivessem, despejavam directamente para o exterior ou para o rio. As primeiras posturas camarárias sobre saneamento público conhecidas em Portugal datam de fins do século XIV, relativas a Évora entre os anos de 1375 a 1395. Desse conjunto, uma parte diz respeito à limpeza urbana, orientando a remoção de lixos, águas acumuladas e dejectos, proibição do trânsito de gado pelas áreas públicas e o despejo de esterco em covas de pão abandonadas.
As Câmaras Municipais de várias cidades e vilas do reino aconselhavam também os mesteirais e lojistas a "varrer e limpar com água a entrada das suas tendas e lojas" com regularidade. Em Lisboa, uma postura obrigava todos os moradores a varrer diariamente a rua em frente à sua porta desde o dia de Páscoa até ao dia de São Miguel (ou seja entre Março/Abril e Setembro), época do ano que abrangia a Primavera e o Verão, quando decorriam as procissões mais importantes da cidade, atraindo muita gente de fora, pelo que era ideal que a cidade se apresentasse limpa, mas também porque esses meses de maior calor eram propícios em espalhar agentes de infecção através do lixo acumulado. Em certas datas solenes ou de festa estava também a cargo da Câmara organizar a limpeza urbana, como sucedeu no Porto aquando da recepção a D. João I e Filipa de Lencastre para o casamento régio, em 1387.
Já no Regimento da Cidade de Évora fixado pelo mesmo D. João I em 1392, embora não se tenha feito referência directa à peste, impôs-se uma relação entre essa doença e as condições de higiene insalubres, estudando as necessárias provisões para debelar as doenças, porque "das çujidades e estercos e cousas podres e nojosas e fumos que se delas fasem nos logares recrescem muytos danos e dores aos corpos e ainda parece mal os lugares onde se tal cousa consente". Assim, nas Cortes de 1434 criaram-se grupos de moradores para varrer as ruas dos centros urbanos, e em fins de agosto de 1437, aquando de um surto de peste em Lisboa e arredores, realizaram-se conferências públicas semanais sobre profilaxia e tratamento, tendo o rei aprovado um sistema de medidas sanitárias apresentado pela Câmara de Lisboa. Também na sua obra “Leal Conselheiro”, D. Duarte é de opinião que se deveriam abandonar os lugares infestos para prevenir surtos de peste.

UMA REDE DE ESGOTOS INCIPIENTE:
Em virtude da pressão do crescimento da população urbana medieval foram sendo instalados desde o século XIII em muitas vilas e cidades portuguesas canos para escoamento pluvial, fosse para mitigar o problema das cheias ou a água que se perdia das fontes e chafarizes. No século XV já temos referências sobre canos de pedra em Braga, e em Tomar foi descoberto um cano da mesma época sobre uma calçada. Estes canos também acabavam por servir de rede de esgoto doméstico, pois muito do lixo diário e das águas não tratadas eram aí despejados numa tentativa de as fazer escoar até ao rio, o que levava os ditos canos a ficarem frequentemente entupidos. Em Lisboa, as linhas de água que atravessavam o Rossio e a Baixa foram encanadas entre finais do século XIII e inícios do século XIV, sendo então conhecidas como “rego merdeiro” (sim, leram bem) ou simplesmente “rego”. Tendo a rua por onde este passava ficado conhecida como “Rua nova do cano que vae pera o Rocio” ou, a partir de 1466, como “Rua do cano nova”.

Como é óbvio essas redes de escoamento não conseguiam dar vazão aos crescentes resíduos urbanos, razão pela qual o Concelho de Lisboa propôs ao rei D. João II em 1486 a construção de uma rede de esgotos (se é que já se poderia chamar assim) alargada e articulada entre canos de diferentes dimensões que correriam não só ao longo das ruas principais e secundárias mas inclusive prevendo ramais com ligação directa aos prédios (“Que se deve fazer por alguas Ruas principaaes canos mui grandes, e por as outras Ruas outros mais pequenos, que vão teer a elles…”). Talvez por ser demasiado ambicioso e dispendioso para a época, o rei cancelou os planos e reduziu os encargos à obrigação de “todolos que taes canos teem que os alimpem e os façam alimpar mui bem”.


Para mostrarmos como o reino português não era excepção, apresentamos brevemente um exemplo de legislação inglesa, muito semelhante a outras um pouco por toda a Europa. Desde as primeiras proibições de descargas no rio Tamisa em 1357 e 1372, a responsabilidade local pelo despejo do lixo passou a ter um controlo de âmbito nacional após a emergência da peste. Assim, o parlamento aprovou em 1388 um decreto régio de Ricardo II com as primeiras leis de higiene urbana: "Tanta sujidade e restos que são lançados aos rios e outras águas que os ares aí crescem corruptos e infectados (...) e doenças acontecem diariamente...fica assim acordado e assente: que se proclame na cidade de Londres e todas os outros lugares e vilas deste reino de Inglaterra que os lixos, dejectos e restos atirados em águas, rios e ribeiros que sejam imediatamente removidos e enterrados em covas, sob pena de crime contra o rei nosso senhor e o pagamento de uma multa na soma de 20 libras". (“The Statutes of the Realm”, vol.2 - Londres, 1816, pp. 59-60).

Apesar de todos estes esforços desenvolvidos ao longo dos finais da Idade Média, a higiene e saneamento públicos estavam longe de ser eficientes e generalizados.
Limpeza geral a fundo das cidades só em determinadas circunstâncias, como uma visita do rei, casamentos régios, procissões ou outras festas religiosas. Uma das muitas funções dos almotacés das cidades (oficial municipal encarregado da fiscalização dos pesos e medidas, da taxação dos bens alimentares e da distribuição dos mesmos em períodos de escassez) era também zelar pela limpeza urbana. Como nem todas as freguesias tinham “esterqueiras” – compartimentos de esterco que eram periodicamente despejados – são mencionadas a acumulação de lixo junto às muralhas e denunciava-se o lançamento de “bestas, cães e outras coisas sujas e fedegosas na cidade ou vila”. Tentava-se também melhorar a limpeza do espaço público controlando o desperdício dos ofícios urbanos: tripeiras, pescadeiras, carniceiros, curtidores, oleiros ou tintureiros eram obrigados a remover todos os detritos e sujidade resultantes da sua actividade e a exercer o seu trabalho fora das muralhas. Em Évora penalizava-se quem lançasse nos poços, fontes e chafarizes “besta, cão, animal ou coisa suja, roupa, coiros ou peles”.

Entre outras posturas municipais proibia-se que nas praças e ruas lançassem testeiradas de lixo ou de água sem antes dizer três vezes: “água vai”. E porque as coimas existiam para quem não cumprisse as regras, queixavam-se os moradores da Rua Direita em Lisboa, em 1458, que nela abundava água suja, mesmo com todas as proibições, e, sentindo-se injustiçados, exigiam estes moradores não “haverem de pagar coima por aqueles que deitavam as ditas águas” e requeriam a colocação de um aviso proibindo a sujidade e “pedindo que mandassem ali deitar um pregão para cada um não lançarem ali mais nenhuma água sob certa pena”. A constante renovação destas proibições e penas faz supor que os habitantes não seguiam o que estava determinado, devido à precariedade das estruturas de saneamento.

- Pedro Alves.
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