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Geraldo 'Sem Pavor', caudilho de fronteira

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',



Representação de finais do século XIV ou inícios do XV de Geraldo Geraldes (?). Originalmente, esteve na casa de ver-o-peso; é visualizável actualmente no Museu de Évora. Fotografia digitalizada da obra de Armando de Sousa Pereira devidamente citada na bibliografia (e cuja leitura é recomendada).


Geraldo Sem Pavor, caudilho de fronteira.

Em meados do século XII, subitamente surge uma figura temível no ambiente da fronteira entre o reino de Portugal e o al-Andalus: Geraldo Geraldes, mais conhecido por Geraldo Sem Pavor. As origens deste caudilho são no mínimo obscuras e altamente especulativas: a narrativa de André de Resende, já no século XVI, segundo a qual Geraldo era um vassalo nobre de Afonso Henriques caído em desgraça por um crime misterioso, enquadra-se na construção renascentista da História da cidade de Évora e não parece ter base em facto algum. Também há a possibilidade de ter sido um cavaleiro-vilão de Santarém, mas o que se sabe ao certo é que ele teria nascido em espaço cristão e depois passado algum tempo no al-Andalus, possivelmente como escravo, tendo depois saído de alguma maneira do espaço muçulmano. Esta experiência de vida foi-lhe muito útil ao longo da carreira, pois permitiu dominar a língua árabe e conhecer as tácticas almóadas como poucos conheceriam no mundo cristão, mesmo na zona de fronteira.



Embate das cavalarias ligeiras.

Cavaleria pesada cristã contra a cavalaria ligeira andaluz.

Cavalaria ligeira almóada.

Cavalaria ligeira almorávida.



De qualquer maneira, independentemente das suas origens ou até de poder ter participado na tomada de Beja em Dezembro de 1162, o nome aparece de forma fulgurante em 1165, com a tomada de Trujillo em Abril, de Évora em Setembro e de Cáceres em finais de Dezembro. No ano seguinte, Montánchez caiu em Março e no mês seguinte Serpa e Juromenha, onde firmou a base do seu bando. Talvez também possa ter conquistado mais ou menos pela mesma altura Moura e Alconchel, embora os “Annales Domni Alfonsi Portugallensium Regis” atribuam a sua conquista a Afonso Henriques, assim como Lobón e Monsaraz até 1168. O percurso do bando de Geraldo era bastante sinuoso, mas, observando um mapa, vemos que estas conquistas estão todas à volta de Badajoz, sendo todas as cidades e/ou fortificações mencionadas acima parte do seu sistema defensivo. Assim, podemos inferir que o seu objectivo último seria isolar e apoderar-se de Badajoz, tal como efectivamente quase veio a ocorrer em 1169, quiçá com a intenção de fazer da cidade o seu senhorio pessoal.


Mapa dos reinos cristãos por volta de 1157, no início da "época dos cinco reinos", para usar a clássica expressão de Menéndez Pidal. Note-se acima de tudo como a expansão leonesa contra o al-Andalus estava ameaçada por um bloqueio por parte dos castelhanos e portugueses, tal como a expansão de Navarra tinha acabado. Foi essa razão a principal por trás das intervenções leonesas em Badajoz tanto em 1169 como em 1170, que acabaram por selar o fracasso da estratégia de Geraldo Sem Pavor. Fonte: Antón, José María Monsalvo (1984). "Atlas Histórico de la España Medieval". Editorial Sintesis, p. 132.

Mas como eram estas conquistas feitas? O que sabemos do seu bando? Este é designado como sendo de “ladrões” pelos “Annales”, o que é concordante com as indicações das fontes árabes e indicia-o como composto principalmente por guerreiros marginais organizados à volta do seu chefe, que garantia o sustento e armas da mesnada com o saque e rendimentos das zonas ocupadas, podendo ser assistidos nas suas operações por cavaleiros-vilãos portugueses, nomeadamente de Santarém. Nisto, não era muito diferente de outros caudilhos medievais peninsulares como o famoso Rodrigo Díaz de Vivar, “El Cid” (daí a alcunha de Cid Português). O “modus operandi” na tomada de lugares fortificados era tipicamente o de golpes-de-mão, de acordo com Ibn Sahib al-Sala: o ataque era feito pela calada da noite, com o uso de escadas ou talvez de cordas (como a etimologia da família Pestana, seus possíveis descendentes, poderá revelar), cujo uso até poderia ser tão ou mais plausível dado a dificuldade em transportar escadas sem fazer grande barulho. Após a escalada da muralha pelos primeiros homens, a sentinela era surpresa e obrigada a fazer os seus barulhos habituais, enquanto o resto da hoste de Geraldo subia pelos muros. A seguir, um grito de guerra era lançado e o exército cristão surpreendia o local atacado com a sua fúria assassina e pilhagem. Mesmo assim, não devemos ver estes ataques como exterminadores da população muçulmana como a tradição posterior, exemplificada na heráldica da cidade de Évora, nos apresenta até porque conhecemos a sua sobrevivência em vários casos como na própria cidade citada. Com os locais tomados, vinha a venda deles a Afonso Henriques, que depois tomava conta do território. Efectivamente, a relação dele com o rei é no mínimo estranha: não é claro que houvesse mesmo vassalagem a Afonso I, mas há alguns indícios que podem apontar nessa direcção, como o título de alcaide indicado na última refundição dos “Annales Portucalenses Veteres” ou até o tratamento dado pelos “Annales”, mas ainda é tudo um pouco vago. Pelo menos, uma coisa é certa: havia uma relação privilegiada entre os dois, bem patente na falta de negócios de Geraldo com outros monarcas como o leonês ou até nas colaborações militares portuguesas acima referidas, especial mas não exclusivamente contra Badajoz.


Mapa com algumas das movimentações de Geraldo Sem Pavor em 1165-1169 e os movimentos leoneses e almóadas em 1169. Retirada da "História de Portugal" coordenada por José Mattoso.

Com este parêntesis sobre as suas forças fechado, voltemos a Badajoz. Finalmente ficava à vista de Geraldo Sem Pavor, que atacou a povoação entre finais de 1168 e Janeiro de 1169, quando uma carta califal nos informa de que Geraldo já teria começado o seu ataque. Tomou os arrabaldes e cercou a alcáçova durante meses, mas ele e Afonso Henriques, que o viera ajudar nessa conquista em particular, foram surpresos em Maio pelas forças leonesas e almóadas (os primeiros aliaram-se aos muçulmanos para evitar que Badajoz caísse em mãos leonesas e bloqueasse a sua própria expansão), tendo sido ambos capturados na fuga da cidade. O caudilho acabou provavelmente nas mãos de Fernando Rodríguez de Castro, que obteve dele Trujillo e outros castelos da actual Extremadura espanhola em troca da sua libertação como senhorio sob dependência almóada até 1174. Posto isto, Geraldo Geraldes não desistiu e continuou a assolar a área de Badajoz de modo a garantir a queda da cidade por falta de suprimentos. Chegou a cercar novamente a antiga capital da Marca Inferior com a ajuda do Infante Sancho em Setembro de 1170, mas foi novamente derrotado por uma expedição de socorro almóada e leonesa, que também tomou a sua base de Juromenha. Mesmo assim, as hostilidades continuaram e em 1172 foi a vez de Beja cair nas mãos cristãs por incúria do governador local, contudo foi outra vez abandonada no ano seguinte por Afonso I, que assinou tréguas com os almóadas por 5 anos.


Sector de muro tardo-antigo (embora reconstruído após 913) presente por trás do Paço Régio de S. Miguel ou Paço dos Condes de Basto, onde hoje se situa a Fundação Eugénio de Almeida.


Sem a capacidade de sustentar os seus homens como o fazia anteriormente e possivelmente a confiança do rei português devido ao fracasso da sua estratégia, Geraldo Geraldes passou-se para o Califado Almóada. Para alguém habituado a pensar numa luta sem quartel entre muçulmanos e cristãos, esta realidade pode ser estranha, mas o facto era que nobres cristãos e muçulmanos frequentemente serviam o suposto “inimigo”: vejam-se os casos de El Cid ou do príncipe português Pedro Sanches ou ainda do famoso rei islâmico Zafadola, vassalo de Afonso VII. No Califado Almóada, serviu como governador do vale do Sus no Norte de África para além de ter ajudado o califa Abu Yaqub Yusuf a esmagar revoltas nessa zona em 1176-1177. Todavia, esta colaboração não o impediu de alegadamente conspirar com Afonso Henriques para que ele conquistasse pelo menos parte de Marrocos com a sua ajuda em 1177. O esquema pode parecer mirabolante, mas já nessa altura o poder naval do rei português estava em pleno desenvolvimento e afigurava-se nas águas atlânticas como rival da marinha de guerra profissional almóada, o que veio a ser demonstrado mais tarde com os ataques de Fuas Roupinho a lugares tão distantes como Ceuta (a base naval almóada) em 1178-1181. Portanto, a ameaça de tal conspiração era real e Abu Yaqub Yusuf reagiu prontamente: convidou Geraldo Geraldes a Marraquexe e enviou-o para o vale do rio Drá, onde foi decapitado por ordens califais e a sua hoste dispersa. Assim acabou a carreira de um dos senhores da guerra fronteiriços mais impressionantes de toda a Hispânia medieval…


Torre das Quinas, no Paço dos Duques de Cadaval. Era mais uma parte dos muros tardo-romanos/islâmicos da cidade visíveis por Geraldo Sem Pavor em 1165.

Parte do castelo medieval de Juromenha. Geraldo Sem Pavor fez desta fortaleza o seu centro de actividades até que foi cercada e tomada em 1170 pelos almóadas e leoneses como retaliação pelos ataques e cerco desse ano a Badajoz. Apesar de terem cercado o caudilho, este conseguiu escapar da fortaleza. Hoje em dia, praticamente nada deste covil de ladrões sobrevive. Só temos alguns muros medievais mais tardios e a imponente fortaleza moderna, infelizmente colocadas ao abandono e em ruína (basta lembrar a torre medieval caída recentemente).

Vista da alcáçova de Badajoz, onde Abu Umar ibn Timsalit e a sua guarnição aguentaram provavelmente desde finais de 1168 até Maio de 1169 o cerco de Geraldo e de Afonso Henriques. Mais tarde, em 1170, o caudilho e o infante Sancho tentaram tomar novamente Badajoz, sem sucesso.

Por ser uma figura marginal, provavelmente sem ascendentes ou descendentes nobiliárquicos nos séculos imediatamente seguintes, e possivelmente também por causa da sua passagem para o serviço almóada, Geraldo acabou por ser esquecido na cronística tardo-medieval e nos livros de linhagens, mas a sua memória sobreviveu em Évora. Aí foi acarinhada pelas elites locais, especialmente a partir do furor cruzadístico após a batalha do Salado (1340), como um símbolo purificador e refundador da cidade cristã, tendo a construção dessa tradição despoletado mais tarde os escritos de André de Resende já mencionados em pleno século XVI. Esta memória tardo-medieval é testemunhada em dois magníficos baixos-relevos, um da catedral (século XIV) e outro da casa de ver-o-peso (finais do século XIV ou inícios do XV): Geraldo é apresentado de forma relativamente similar a São Tiago, com as diferenças notáveis de omitir o estandarte do apóstolo e de apresentar as cabeças de uma moura e um mouro em cada lado dos baixos-relevos, que segundo o relato de André de Resende seria o mouro de vigia numa atalaia e a sua filha. Essa representação de Geraldo Sem Pavor perduraria na heráldica contemporânea da cidade. Também no século XV, os Pestana, uma família relativamente secundária das elites locais nobilitada pela sua ligação matrimonial aos Silveira, começou a reclamar descendência do conquistador de Évora. Mesmo que a tradição seja tardia, a antiguidade da família (já atestada desde 1215, com indivíduos a viver seguramente desde finais do século XII) e a etimologia de “Pestana”, provavelmente derivada do árabe “bi-ashtan” (“com cordas”), indica uma possível descendência de Geraldo ou pelo menos de alguém da sua mesnada.


A edição de excertos das obras de Ibn Sahib al-Sala e de Ibn Idari, são de longe as fontes primárias mais informativas sobre o Geraldo Sem Pavor.


Fernando II de Leão, representado numa iluminura do Tumbo A de Santiago de Compostela.

Brasão da Câmara Municipal de Évora, onde se pode verificar a perpetuação da memória tardo-medieval de Geraldo Sem Pavor como o conquistador que purifica a cidade da presença impura dos muçulmanos, representados nas cabeças de um mouro e moura (segundo André de Resende, o guarda de uma atalaia e a filha). Obviamente, dada a presença de uma mouraria posterior e o que é sabido da realidade hispânica de meados do século, tal limpeza étnica parece altamente improvável, para dizer o mínimo, independentemente da brutalidade registada por Ibn Sahib al-Sala.

Fontes:


Barata, Filipe Themudo (2004). "“A Actuação de Geraldo Sem Pavor no Quadro das Sociedades de Fronteira do Século XII”. In Actas do 2º Congresso Histórico de Guimarães, Parte 2, pp. 359-374


Casillas, Carlos J. Rodríguez (2009). “Geraldo "Sempavor": las hazañas de un guerrero portugués por tierras extremeñas”. XXXVIII Coloquios Históricos de Extremadura: dedicados a los moriscos en Extremadura en el IV centenario de su expulsión : Trujillo del 21 al 27 de septiembre de 2009, Vol. 2, 2010, págs. 693-716.


Coelho, António Borges (1989). “Giraldo Sem Pavor” in “Portugal na Espanha Árabe”, vol. II, “História”. Editorial Caminho, Lisboa, pp. 303-310.


Costa, Bárbara Patrícia Leite (2014). “Engenhos, armas e técnicas de cerco na Idade Média portuguesa (séculos XII-XIV)”. Dissertação de Mestrado em Arqueologia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pp. 89-94.


Mattoso, José (1997). “Dois Séculos de Vicissitudes Políticas” in “História de Portugal”, vol. II, “A Monarquia Feudal, 1096-1480”. Editorial Estampa, Lisboa, pp. 69-71.


Mattoso, José (2007). “D. Afonso Henriques”. Temas & Debates, Lisboa, pp. 299-304 e 336-339.


Pereira, Armando de Sousa (2008). “Geraldo Sem Pavor. Um guerreiro de fronteira entre cristãos e muçulmanos, c. 1162-1176”. Fronteira do Caos, Lisboa.


Rei, António (2012). “Geraldo Sem Pavor, a conquista de Évora e a origem da família Pestana”. In “Raízes & Memórias” nº 28 (2012), Associação Portuguesa de Genealogia, Lisboa, pp. 119-126. ~ José



Informação adicional:



1 comentário

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estagino
18 de jan. de 2022

Só me resta aconselhar a leitura do meu último romance histórico, O Sem Pavor, no mercado desde 13 de janeiro de 2022, há, portanto, apenas cinco dias. Sigo praticamente a linha historiográfica referida neste trabalho, com uma ou duas exceções ao mesmo tempo que "aliso" algumas dúvidas aqui expostos. Trata-se de um romance em que pretendi apresentar, para além do que sabemos sobre a lenda de Geraldo, igualmente a relação umbilical do rei com o arcebispo de Braga, D. João Peculiar, e a relação atribulada com Geraldo, num quadro político complexo em que a consolidação do reino portucalense se fazia, simultaneamente, contra Leão, contra a taifa de Badajoz e contra os Almóadas, e, politicamente, nas chacelarias da cúria papal.

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