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Estradas medievais em Portugal e na Europa

Foto do escritor: InfoBlog de JDInfoBlog de JD

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',



Estradas medievais em Portugal e na Europa: uma herança Romana ou uma revolução da rede viária ?


Não obstante a deficiência dos transportes e a relativa má qualidade das estradas medievais, as pessoas deslocavam-se naquela época com muito mais frequência do que inadvertidamente se poderia julgar e do que até há algum tempo se pensou. Hoje sabemos que o homem medieval viajava bastante, por necessidade ou por prazer e que sobretudo os últimos séculos da Idade Média foram um período de grande mobilidade populacional.


Sozinhos ou acompanhados, a pé, a cavalo ou de carroça, apenas por curtos percursos ou longas viagens por entre diferentes regiões e até cruzando reinos, o Medievo conheceu muitos numerosos viajantes, de todas as camadas sociais e com as mais variadas possibilidades económicas: desde a pouco apressada mula do prelado ao corcel fogoso do correio real, aos mercadores e almocreves que se deslocavam de feira em feira ou de vila em vila para vender os seus produtos e todos aqueles que a elas afluíam para os comprar. Eram os senhores da nobreza ou os representantes da Coroa que percorriam os seus domínios para os inspeccionar, para administrar Justiça ou para recolher impostos. Eram os pedintes andantes que descansavam e pernoitavam nas albergarias e hospitais, eram os clérigos que se deslocavam pela diocese, fazendo as visitas canónicas às suas igrejas, ou os peregrinos dirigindo-se a Jerusalém, a Roma ou a Compostela.


Peregrinos de Santiago (Cantigas de Santa Maria, século XIII). A maioria das estradas era percorrida a pé, entre os que se deslocavam só a curtas distâncias ou os peregrinos em longas viagens. Os caminhos de terra batida secundários eram os preferidos mas encerravam uma série de perigos como assaltantes de estrada.

Mas para isso eram preciso redes viárias que ligassem as cidades, os portos e todos os pontos vitais das rotas comerciais. De facto, se no Medievo a maior parte dos caminhos eram bastante simples, de terra batida, havia um legado que na altura se revelou importantíssimo como via de transporte entre os aglomerados populacionais mais importantes: os quilómetros de estradas romanas sobreviventes. A decadência política de Roma não significou a destruição da sua rede viária, antes esta foi frequentemente utilizada pelos povos vindos do exterior que penetraram profundamente no Império. Estudos já realizados apontam para que nesta época as vias de comunicação estivessem relacionadas com objectivos económico-administrativos e com o carácter estratégico que determinados núcleos urbanos adquiriram na organização do território e na sua defesa militar. As populações preocuparam-se, progressivamente ao longo da Idade Média, em construir e/ou manter as estruturas viárias indispensáveis à sua cidade, vila ou aldeia. No entanto a extensão dessa influência romana é bastante discutível pese embora o imaginário popular em vários países, e especialmente em Portugal, atribuir origens romanas a estradas e pontes que na verdade foram construídas ou extensivamente remodeladas na Idade Média. Assim sendo, é ou não verdade que as antigas estradas romanas estavam assim tão preparadas para continuar a servir de redes de transporte após séculos de abandono da sua manutenção?


A resposta é assim-assim, dado que se assistiu até a um aperfeiçoamento de alguns dos processos anteriores de construção em novas estradas e à substituição de estruturas viárias como pontes, circunstância que historiadores já identificaram como um dos elementos de distinção entre a herança da romanização e a realidade medieval. Tem-se inclusive duvidado que as estradas romanas coincidissem com as medievais, uma vez que eram difíceis de conservar, mas há casos do seu uso continuado ao longo dos séculos e uma outra questão que se levanta prende-se com o conjunto de troços novos, de cariz medieval, face ao legado viário romano, este último desde sempre considerado a base da rede de comunicações terrestres medieval, por isso, a permanência das estradas romanas é incontestável no que toca aos grandes eixos mas o homem medieval criou, modificou e adequou novos itinerários aos seus interesses e necessidades específicas, através de uma vasta malha de caminhos complementares, imprescindíveis à sua vivência quotidiana.


Via Romana 16 (XVI), ligando as cidades do Porto e de Sever do Vouga (chamava-se Talábriga, era perto da actual Sever do Vouga) em Portugal. Teve sem dúvida obras de manutenção e reconstrução na Idade Média, mas mesmo assim apenas alguns trechos desconectados sobreviveram até aos nossos dias, como esse. Notem na fiada de pedras perpendicular às bermas, característica dos travões de estrada colocados no período Medieval.

Na Idade Média as ruas já tinham nome, mas eram muito mais práticos do que hoje, com muito menos homenagens a pessoas. Um exemplo: em Portugal tinha as ruas "Direitas", as mais amplas e principais de uma vila ou cidade. Depois tinha nomes como "rua do beco escuro", "rua do chafariz" disso ou daquilo, etc. E ainda ruas que nomeavam as principais actividades comerciais e económicas que nelas se praticava, como a "rua dos ferreiros", a "rua dos tanoeiros", a "rua dos remolares", a "rua dos tecelões", e por aí adiante.


Estrada romana/medieval de Alqueidão da Serra, perto de Porto de Mós, Portugal. Por esse trecho passaram as tropas de D.João I a caminho do campo de batalha de Aljubarrota, em 1385.

Estrada romana/medieval na Dordonha, França. Por toda a Europa as antigas estradas romanas foram reaproveitadas no Medievo. A sua calçada típica permitia que as carroças e os cavalos pudessem viajar mais rápido sem ficarem atascados em caminhos lamaçentos.

TRAÇADO DAS VIAS E TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO:

Nos autores consultados existe uma unanimidade de que as vias medievais são por regra sinuosas, em oposição às vias romanas. Tal facto dever-se-á à maior preocupação de ligar não só os pequenos núcleos urbanos entre si como ligá-los também aos principais, permitindo a dinamização da relação campo-campo e campo-cidade. A procura por essa ligação podia, de facto, tornar uma via mais sinuosa fazendo-a passar pelo maior número possível de núcleos populacionais. O eixo móvel dos carros medievais também pode ter tido influência no desenvolvimento desta característica, na medida em que uma via mais sinuosa podia ser igualmente percorrida. Só a partir de uma análise comparativa de um conjunto se pode afirmar que uma via é tendencialmente mais sinuosa do que recta e vice-versa.


Esquema técnico da construção de uma estrada: as fiadas perpendiculares às bermas, os travões, eram uma característica tipicamente medieval.

A construção de estradas e pontes por toda a Cristandade Medieval, adaptou à sua realidade o modelo latino herdado da Antiguidade, uma vez que não apresentou, ao que parece, soluções construtivas alternativas e inovadoras face à técnica viária de tradição romana, no entanto esta é uma questão que levanta ainda muitas dúvidas uma vez que se encontra pouco estudada. O caminho medieval carecia, na maioria dos casos, de pavimento e, sobretudo, não apresentava estrutura por camadas, tão característica da "strata" romana. Na generalidade dos casos, limitou-se a um acondicionamento superficial do terreno, sendo utilizados, sem grande preparação, os materiais existentes no local ou nas proximidades. A técnica de construção utilizada limitava-se ao aplanar do leito da via, sendo a aplicação de pavimento excepcional, restrita aos troços de acesso às cidades, às pontes e às passagens estratégicas. No entanto, isto conferia-lhes uma maior durabilidade dado que não estavam sujeitas ao esmagamento dos vários substratos que, com cargas muito pesadas, fazia com que perdessem as suas propriedades plásticas iniciais, tal permitia que as vias medievais suportassem uma maior carga ou peso até cinco vezes superior do que as romanas.


Mapa da rede viária calcetada em Portugal na Idade Média. (A Estrada da Beira, reconstituição de um traçado medieval, Helena Monteiro). As principais vias de ligação do período romano em Portugal ligavam as principais cidades, a essas somaram-se mais algumas ligações secundárias construídas no Medievo, de forma a servir as populações de novas vilas e urbes nascidas entretanto.

Outras peculiaridades do calcetamento de uma via medieval que a pode datar como tal são os “degraus fortes” ou grandes blocos pétreos de forma rectangular ou sub rectangular de dimensões similares (conforme se podem observar, por exemplo, na via que dava acesso aos castelos e vilas de Celorico da Beira ou de Santa Maria da Feira em Portugal, na via do vale de Besaya em Cantábria na Espanha, nas vias da Picardia e do Langues em França e nas estradas de Oxford e Cantuária em Inglaterra) e os travões, isto é, fiadas de pedras transversais às margens e que são geralmente de maiores dimensões do que as que constituem a calçada.


PONTES MEDIEVAIS:

As pontes medievais introduzem alguns particularismos arquitetónicos que permitem diferenciá-las das romanas: embora mantendo o uso do arco de volta inteira introduzem o arco quebrado ou gótico (também denominado ogival); a gravação de siglas ou marcas de canteiro, cujo uso se vulgariza nos começos do século XII, que aparecem geralmente no intradorso das aduelas ou interior dos arcos; e os tabuleiros em cavalete ou de piso em dupla rampa bastante caraterísticos em pontes românicas e góticas datáveis entre os séculos XII e XIV. As aduelas dos arcos costumam ser de dimensões irregulares com tendência para se tornarem mais longas ou altas, estreitas e desiguais entre si e podem surgir em duplas fiadas em pontes góticas. A jusante as pontes góticas podem apresentar contrafortes em vez de cortamares. As pontes concebidas na Idade Média costumam ser mais estreitas que as romanas e muito raramente ultrapassam a largura de 4,50m. No que toca ao material construtivo são utilizados na maior parte dos casos com exclusividade materiais de origem local. A cantaria romana dá lugar à alvenaria, ou seja, materiais de forma e dimensão irregulares que se travam entre si pelo modo como estão dispostos ou por um ligante/argamassa. A realidade viária medieval, face às necessidades das populações e às características locais, adequou as técnicas aos materiais disponíveis na região de implantação, por forma a colmatar as dificuldades de deslocação terrestre e assim manter uma dinâmica movimentação de pessoas e bens.


Estrada medieval e ponte de Cabril em Mondim de Basto, Portugal. A maior parte dos caminhos eram estreitos e as pedras usadas no calcetamento variavam consoante a matéria prima disponível, algumas tinham blocos pétreos mais robustos, outras mais espraiadas.

Torre medieval de Ucanha, Portugal. (Século XV) Essa ponte regulava a entrada no couto eclesiástico de Salzedas. Na torre pagavam-se os direitos de portagem.

Ponte romana de Alcântara, em Espanha. Os arcos de volta perfeita e o aparelho de construção seguiam regras mais rígidas na Antiguidade. Também os vãos romanos permitiam que as pontes cruzassem os rios com margens mais inclinadas.

Ponte medieval de Lozére em França. O desenho em bico e os vãos e arcos mais afastados que as pontes romanas indicam a origem da construção dessa ponte, provavelmente dos séculos XIII ou XIV.

Ponte medieval de Blackwell, Inglaterra. Comumente chamada de ponte "romana", os arcos ogivais denunciam a sua origem como medieval, do período gótico.

ALOJAMENTO NOS ITINERÁRIOS:

Uma das tendências que caracterizam as vias utilizadas na Idade Média é a sua passagem por edifícios ou templos religiosos, algumas vezes, inseridas em itinerários de peregrinação. À berma destas vias também se podem localizar albergarias, hospitais, igrejas e mosteiros, ou até cruzeiros, sendo que estas estruturas ajudariam os mais pobres e os peregrinos nas suas deslocações. Todavia, no que a esta característica diz respeito é de referir que poderiam ser construídos, em época Medieval, albergues e hospitais junto de vias romanas que continuaram a ser transitadas. Conseguimos traçar algumas características das vias frequentadas na Idade Média, de facto, elas podem diferenciar-se das romanas por esta nova orientação e preocupação. elas fornecem ao viajante uma maior alternância e opção no trajecto a seguir, ao invés das romanas que se preocupavam mais entre a ligação dos principais centros urbanos do império, o que não refuta a existência de caminhos vicinais, contudo estes seriam em muito maior número no Medievo. As estradas romanas, quando passavam perto de centros urbanos em crescimento, transformar-se-iam em ruas principais. O traçado das vias podia servir também como limite divisório de propriedades ou herdades visto que estavam em constante mutação de propósito ou trajecto e até de acesso. Aquelas mais rudimentares, em terra batida, seriam naturalmente as mais modificadas até porque seriam as mais atingidas em épocas de intensa chuva ou de inundações.


O APROVEITAMENTO DAS ESTRADAS ROMANAS NA PENÍNSULA IBÉRICA DURANTE A ALTA IDADE MÉDIA:

A rede viária dos primeiros séculos medievais foi alvo de um quadro legislativo que demonstra o interesse do poder real Visigodo em manter a segurança viária e o bom estado dos caminhos. Assim, no código de Recesvindo, o "Liber Iudiciorum", compilam-se algumas das leis que manifestavam o cuidado com as problemáticas viárias. Entre as várias disposições legislativas encontram-se referências a aspectos como a manutenção das bermas, ordenando-se que estas tivessem espaço suficiente para os viajantes repousarem, ou a questões de segurança, impondo-se severas penas a crimes de roubo praticados sobre os viajantes. Contudo, e pese embora o interesse demonstrado pelas vias peninsulares, a organização institucional Hispano-Goda não estava preparada para comportar os custos e cuidados exigidos pela rede viária, limitando-se a manter e utilizar as estruturas herdadas dos romanos, sem as alterarem significativamente. Com a chegada dos Muçulmanos a preocupação e o interesse pela estrada ganhou uma nova importância, embora na verdade tenham optado pela manutenção dos principais eixos da rede de calçadas de origem romanas ainda utilizadas. As campanhas militares Islâmicas, como as de Almansor ocorridas entre os anos de 981 e 1002, utilizaram alguns desses eixos, confirmando a sua manutenção como linhas de contacto. Os itinerários seguidos indicam que as vias romanas que, por exemplo, ligavam Lisboa a Coimbra e daí ao Porto se encontravam em bom estado nos séculos X e XI.


Principais vias terrestres e marítimas comerciais na Europa medieval (séculos XIII a XV). (Trade and Wealth in the Middle Ages, Roger Maddison, 2011). Embora mais lentas que as rotas marítimas, os caminhos por terra também acompanharam a dinâmica do crescimento do comércio da época. A má qualidade das vias (que como já vimos, só as principais eram calcetadas) e o perigo nos caminhos eram desvantagens que as pessoas da época tinham de se sujeitar.

Assim, os trabalhos de construção e manutenção dos caminhos obedeceram a uma estratégia que privilegiava uma orientação Sul/Norte e a garantia de eficazes contactos entre os núcleos urbanos de ocupação islâmica. Subsistiram neste período três grandes eixos no Ocidente do Al-Andalus: Sevilha-Badajoz-Mérida; o vale do Guadiana e a via Faro-Beja-Évora-Lisboa-Santarém-Coimbra, sendo as principais modificações face à herança romana e visigoda fruto da evolução do tecido urbano e da circulação comercial islâmica.


Embora tudo aponte para que os acessos às cidades do Al-Andalus fossem calcetados, contudo, uma vez que não se utilizavam carros de tracção animal, as autoridades islâmicas relegaram para segundo plano a pavimentação dos caminhos, a qual não ocorria com frequência. Os Muçulmanos preocuparam-se mais com a segurança e condições de viagem tais como a disponibilidade de água e a hospedagem. No que respeita à zona de ocupação cristã, a norte do rio Tejo, as vias terrestres pouco se alteraram desde a época romana. Mantiveram-se os contactos através da ligação principal Coimbra-Porto-Tui, dando-se particular relevância à zona litoral e desprezando o interior montanhoso, cuja excepção deverá ter sido apenas a ligação Braga-Astorga por Chaves e Bragança. No entanto, as pequenas povoações do interior deviam ser servidas por uma malha de caminhos secundários e locais, dos quais pouco se sabe, mantendo um contacto com o litoral através de ligações fluviais pelos rios Mondego e Tejo.


- Pedro Alves.


Estrada medieval em Flusenheim, Alemanha. Podemos distinguir esta estrada das suas anteriores congéneres romanas pela sinuosidade do caminho, enquanto as vias romanas tendiam a ser direitas, as medievais recortavam a orografia dos terrenos.

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:


ALARCÃO, J. de (2002) - O domínio romano em Portugal. 4ª edição. Mem-Martins: Europa-América.


A ESTRADA DA BEIRA: RECONSTITUIÇÃO DE UM TRAÇADO MEDIEVAL, Monteiro, Helena Patrícia Romão. Junho de 2012.


No encalço do passo do Homem medieval, João Maia Romão. Outubro, 2012.

B. P. Hindle, Medieval Roads (1982).


THE TRANSPORT SYSTEM OF MEDIEVAL ENGLAND AND WALES - A GEOGRAPHICAL SYNTHESIS by James Frederick Edwards M.Sc., Dip.Eng.,C.Eng.,M.I.Mech.E., LRCATS. University of Salford, Department of Geography 1987.


The Evolution of Land Transport in the Middle Ages R.S. Lopez, Past & Present, No. 9 (Apr., 1956), pp. 17-29


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