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Distinguindo os Judeus no Direito Medieval

  • Foto do escritor: InfoBlog de JD
    InfoBlog de JD
  • 7 de ago. de 2019
  • 9 min de leitura

Atualizado: 13 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média':



Entre o Chapéu e a Insígnia - Distinguindo os Judeus no Direito Medieval


As relações entre as comunidades judaicas e outros grupos hegemônicos medievais, como cristãos e muçulmanos, sempre foram turbulentas. Apesar do caráter isolado das comunidades judaicas, de uma forma em que a interação podia ser limitada, não havia necessariamente uma forma de diferenciar os judeus de outros cidadãos quando essas interações ocorriam. O primeiro local que exigiu uma diferenciação específica por parte dos judeus foi o Califado Omíada, pelo menos a partir de inícios do século VIII. Essa diferenciação foi uma imposição dos califas ligada à construção de uma sociedade e identidades islâmicas no Império dos Omíadas, plasmadas na roupa: assim os “dhimmies” judaicos eram assinalados como cidadãos de segunda classe, pagando um imposto específico para garantir a sua proteção pelo Califa, assim como para impedir o casamento e o intercurso entre judeus e muçulmanos. Os homens judeus teriam que utilizar uma insígnia dourada no chapéu e no pescoço, e um cinto de cor branca na sua cintura. As mulheres judias, por sua vez, tinham que usar um sinete no pescoço ou em seus sapatos, que deveriam ser, necessariamente, de cor preta e vermelha intercaladas. Os cristãos também estavam sujeitos a esse tratamento no califado, e também utilizavam adereços que os classificavam como “dhimmies”. No entanto, o tipo de vestimenta usado por judeus poderia variar de acordo com aquilo que o califa no poder decretasse como tal, assim como as outras restrições sociais aplicadas aos “dhimmies”, que nem sempre eram respeitadas na prática.


No caso da Europa medieval, os judeus não necessariamente se distinguiam dos cristãos durante o início do período. Apesar de serem perseguidos por alguns cristãos devido à acusação de deicídio, Santo Agostinho defendia a manutenção dos costumes e da religião judaica por conta de sua capacidade de compreensão do Velho Testamento. O papa Gregório I foi o primeiro a legislar em relação aos judeus na Europa, no fim do século VI, estabelecendo que é dever do cristão proteger os judeus como uma parte integral de seu sistema de crenças, utilizando como base as concepções de Santo Agostinho. Isso, no entanto, não impedia massacres promovidos por cristãos comuns contra judeus.


Eventos como o Massacre da Renânia em 1096, e a intensificação do massacre deliberado contra judeus e suas conversões forçadas influenciadas pela Primeira Cruzada forçaram as autoridades católicas a tomarem uma atitude em relação a esse tipo de perseguição, que foi o que levou à aprovação da bula papal “Sicut Judaeis”, pelo papa Calixto II em 1120. O atraso de 24 anos no posicionamento oficial por parte do papa em relação aos judeus se deveu ao fato desse ser um assunto extremamente controverso dentro do alto clero.


Muitos bispos e arcebispos eram a favor da perseguição contra os judeus não somente por conta das acusações de deicídio, mas também porque viam o espólio das riquezas judaicas como uma fonte de renda viável para seus próprios cofres. Ao adotar como posicionamento oficial a proteção dos costumes judaicos, o papa privava uma quantia considerável de bispos de uma fonte de renda viável. Foi precisamente por conta dessa controvérsia que a bula foi alvo de vários ataques, e precisou ser reafirmada em diversos momentos diferentes entre os séculos XII e XV. O ponto de virada para os judeus na Europa, no entanto, viria com o Quarto Concílio Laterano, convocado pelo papa Inocêncio III em 1215. Foi durante esse concílio que foi decidido que os judeus, assim como os muçulmanos, seriam obrigados a utilizar vestimentas que os diferenciassem de cristãos, uma decisão que foi tomada ao se aproveitarem de furos dentro da bula papal “Sicut Judaeis”, e com o único propósito de impedir que judeus se casassem com cristãos.


Por mais que houvesse a determinação do uso de roupas que os diferenciassem, o Quarto Concílio Laterano especificou somente sobre o uso da rouelle, uma rodela amarela no chapéu. É importante ressaltar que o amarelo era uma cor repulsiva na Idade Média, estando ligado ao Diabo, mas boa parte da indumentária e outros símbolos ficou ao encargo da legislação dos reinos. Devido a isso, os judeus passaram a utilizar várias formas diferentes de se identificarem, dependendo do reino de onde viviam. Uma dessas formas de identificação era o chapéu judeu, que era um chapéu com uma aba circular, com uma fina extensão cilíndrica que termina em uma pequena bola. Como a lei judaica obriga a utilização de chapéus, para que os judeus lembrem que acima deles sempre há Deus, inicialmente esse tipo de chapéu foi bem recebido pelas comunidades judaicas medievais, sendo possivelmente um elemento prévio de sua vestimenta tradicional.


Após o Quarto Concílio Laterano, no entanto, o chapéu passou a ser visto como algo pejorativo, já que forçava sobre os judeus uma identidade negativa, tornando-os alvos fáceis para perseguição. A utilização do chapéu passou a ser compulsória para judeus nos territórios do Sacro Império Romano-Germânico, por mais que também fossem utilizados na Hungria e em Portugal. Os reinos da França, Inglaterra, Castela e Aragão adotaram outras formas de identificarem os judeus. O primeiro reino a legislar sobre o uso de uma insígnia costurada na roupa foi o Reino de Aragão, em 1225, no reinado de Jaime I. A insígnia utilizada era, geralmente, a das duas tábuas dos dez mandamentos, que também foi a insígnia que teve o seu uso decretado na Inglaterra em 1274, durante o reinado de Eduardo I. A França foi uma das pioneiras ao forçarem os judeus a utilizarem a a rouelle, que também passou a ser amplamente utilizada não só na França, mas também em alguns territórios fronteiriços do Sacro Império Romano-Germânico, seguindo a ordem do Quarto Concílio Laterano.


Sua utilização na França foi decretada por Luís IX, em 1269, que também impôs uma multa de 10 livres para aqueles judeus que não a estivessem utilizando. Nas Siete Partidas de Alfonso X de Castela, promulgada em 1265, não fica especificamente claro que tipo de sinais diferenciadores os judeus precisam utilizar em suas roupas, sendo assim, pode ter ocorrido uma alternação entre o chapéu e a rouelle, sendo que a legislação deixa clara que deve haver uma marca distinta especificamente sobre a cabeça do judeu. Outras marcas, como a estrela de David, foram utilizadas em alguns locais da atual Itália como Veneza e os Estados Papais, mas também foi usada intercaladamente com o chapéu e a rouelle em Portugal. Neste último reino da Cristandade, as disposições do IV Concílio de Latrão parecem ter sido ignoradas durante mais de um século, até que possivelmente já em meados do século XIV a atitude dos monarcas portugueses começou a mudar. Apesar de ainda não termos confirmação documental, admite-se que Afonso IV pode ter já imposto trajes específicos e o uso tanto da “rouelle” como de um sinal branco no barrete, no que seria reforçado pelos seus sucessores, quer em leis quer em capítulos de cortes, ao longo de século e meio.


Apenas para dar um exemplo, nas Ordenações Afonsinas está registada uma lei de 20 de Fevereiro de 1401. Nesta D. João I, a pedido dos procuradores dos concelhos, que se queixavam de como os judeus ignoravam as leis já existentes ou faziam sinais demasiado pequenos ou de outra forma encobertos, o rei legislou que os judeus deveriam usar um sinal vermelho de seis pernas no peito “a cima da boca do estamago”, nas roupas mais exteriores e com um tamanho pelo menos igual ao do selo redondo régio. Esse sinal vermelho provavelmente se remete à estrela de David.


Apesar de o rei ameaçar com 15 dias de cadeia e o confisco da roupa aos infratores, a verdade é que a lei acabou ignorada, como se vê na documentação régia do século XV.

Devido à pesada carga pejorativa que foi atribuída ao que inicialmente era uma peça de vestimenta tradicional, os judeus aos poucos foram deixando de usar os chapéus, com eles sendo deixados de lado completamente entre os séculos XV e XVI. Mesmo durante o período medieval, podemos ver que os judeus constantemente ignoram a legislação existente em vários locais como nos reinos ibéricos, e até no caso português cartas de privilégio pelas quais o rei isentava certos judeus da sua corte de usarem sinais distintivos ou até cartas de perdão a infratores. Um caso notável, no século XVI, foi o de um médico judeu chamado Jacob ben Samuel, que cuidava de diversas famílias patrícias em Veneza e foi isentado de usar o chapéu judeu para que ele pudesse usar a vestimenta tradicional dos médicos da época, já que cada profissão tinha uma indumentária própria e o médico não poderia utilizar aquela correspondente ao seu ofício por ser judeu. No entanto, houve tentativas de forçar os judeus a readotarem os chapéus, principalmente com a bula papal “Cum nimis absurdum”, em 1555, do papa Paulo IV, que também decretou o estabelecimento do Gueto de Roma, com o propósito de isolar a comunidade judaica do restante da população romana. A rouelle e a estrela de David, no entanto, continuaram sendo utilizadas por judeus independentemente do desuso dos chapéus. O fim da utilização de marcas distintas por judeus só ocorreu com o período da Emancipação Judaica, que começou no século XVIII e foi até o século XX.


Iluminura de um grupo de judeus (identificados pela tábua dos mandamentos em suas roupas) sendo agredidos por um cristão

Publicamos um excerto do livro de KNOLL, Gabriella. Jewish Magic in a Christian World.

Acesso em 29 de junho de 2019.


"O judeu tinha a reputação comum de ser um feiticeiro e era considerado adepto de todos os tipos de habilidades mágicas. Isso fica evidente na apropriação de termos judaicos usados para descrever eventos mágicos: o 'sabá” das bruxas, derivado do termo hebraico Shabat, que significa sábado; e a 'sinagoga' das bruxas, para designar a congregação de uma reunião de bruxas em termos da sinagoga judaica, ou templo. Ainda, o povo judeu em geral era considerado sobrenaturalmente atraído pelas artes mágicas. Esta crença não foi estimulada, porém, por parte dos judeus individualmente flagrados praticando magia, mas associada a toda a sua comunidade, por conta de sua filiação religiosa. Os teólogos cristãos pintavam isto como um desvio inerente da religião judaica, uma vez que ela, havendo eles rejeitado o verdadeiro Deus, deveria estar, necessariamente, venerando o Diabo e sendo os inimiga do Verdadeiro Deus. [...]

Com o tempo, o praticante de magia na forma da bruxa também passou a ser identificado com o Diabo. E como o mago e a bruxa eram ambos reduzidos a hereges, a concepção do judeu foi reformulada na mente cristã ao longo dessas premissas.


Assim, a reputação judaica como magos foi reforçada e exacerbada, já que o judaísmo podia agora, através da nova lógica, ser considerado uma heresia. [...]

Os judeus, aparentemente devido às suas conexões diaspóricas, foram os principais importadores de gemas do Oriente durante a Idade Média. As gemas eram, de fato, uma fonte significativa de poder mágico “natural” para os cristãos que acreditavam que o poder inerente às gemas poderia ser aproveitado pelo mago e usado para fazer amuletos de proteção ou poções de cura.


Uma vez que os judeus vendiam tais itens para uso cristão, era assumido que eles tivessem um grande conhecimento das propriedades mágicas dessas pedras preciosas. Para sua desvantagem, os judeus também eram conhecidos por importar vários tipos de drogas, juntamente com gemas, para as terras germânicas e cristãs. A medicina medieval não se baseava em nenhuma teoria química e, em muitos casos, os remédios importados pelos judeus apresentavam mau funcionamento ou causavam mais danos do que ajudavam, reforçando cada vez mais as acusações de feitiçaria.


A razão mais óbvia para a confusão dos rituais judaicos com rituais mágicos, porém, derivava do desentendimento cristão sobre as práticas judaicas e toda a aura de mistério que emanava deste recluso grupo minoritário. Eles foram capazes de manter muitos dos seus costumes tradicionais, que remontam à antiguidade. Eles até tinham sua própria língua, separando-os ainda da sociedade cristã dominante. Além disso, esta “língua exótica e ininteligível” do hebraico emprestava sua misteriosidade ao praticante cristão supersticioso. Quanto mais ininteligíveis fossem as palavras, presumia-se, mais efetivo uma simpatia seria. Contudo, isto também gerava estranhamento dos teólogos cristãos, que temiam que essas palavras desconhecidas pudessem ser nomes do Diabo ou dos demônios. Assim, a língua hebraica é vista como tendo um forte impacto na magia cristã e, ao mesmo tempo, sendo fortemente discriminada pela sociedade cristã dominante.


Apesar da ampla reputação de feitiçaria, as acusações documentadas de magia lançadas contra os judeus ficam aquém da perícia que supostamente exerciam no campo da magia. Uma revisão da literatura judaica em si não contém referências à perseguição generalizada de magos judeus, tanto pelos cristãos quanto por outros judeus. Além disso, a magia que eles tinham a reputação de praticar não aparece proeminentemente, se é que aparece, nas obras judaicas. Apesar disso, a profissionalização do mago nunca ocorreu na cultura ou economia judaica, pois os judeus que praticavam a magia possuíam sempre outras ocupações; eram médicos, teólogos e até mesmo rabinos, na maioria das vezes todos eram eruditos. Talvez a possibilidade de que os judeus não estivessem de fato, mas apenas teoricamente, ligados à magia, seja provado decisivamente em Bernardo Gui, autor de um infame e amplamente usado manual dos inquisidores, onde ele 'não faz qualquer referência ligando os judeus à magia, embora discuta amplamente sobre os judeus, bem como sobre bruxaria e magia.' "


-Daniel Pradera



Referências:


Norman Roth (Ed.) - Medieval Jewish Civilization: an encyclopedia

Sara Lipton - Dark Mirror: the medieval origins of anti-jewish iconography

Eric Silverman - A cultural history of jewish dress

Robert G. Hoyland – In God’s Path: The Arab Conquests and the Creation of an Islamic Empire

Sérgio Alberto Feldman - Exclusão e marginalidade no reino de Castela: O judeu nas

Siete Partidas de Afonso X

Mário José Ferro Tavares - Linhas de Força da História dos judeus em Portugal das origens a actualidade.

Ana Rodrigues Oliveira – O Dia-a-Dia em Portugal na Idade Média

Bernardo Vasconcelos e Sousa – D. Afonso IV

Ordenações Afonsinas, Livro II, Título LXXXVI


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