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Cavaleiros e Cavalaria

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Cavaleiros e Cavalaria, Ideologia, práticas e rituais aristocráticos em Portugal, nos séculos XIV e XV Apresento desta vez, para o nosso álbum de bibliografia, esta obra de Miguel Aguiar sobre a cavalaria em finais da Idade Média, uma questão mal compreendida tradicionalmente por muita historiografia que considera(va) a cavalaria como um resquício anacrónico nos alvores da modernidade. Felizmente, este trabalho desmistifica essa ideia, mostrando como a cavalaria era um sistema ideológico em constante redefinição à medida que o Estado Moderno tomava forma, servindo neste contexto como um modelo regulador das relações internobiliárquicas e da nobreza para com a monarquia, tanto a nível “nacional” como internacional.



Antes de nos adiantarmos com mais pormenor sobre algumas conclusões do livro, passemos um pouco em revista a sua estrutura. Após uma definição rigorosa de conceitos a estudar e uma introdução breve ao estado da historiografia a nível nacional e internacional, o autor propõe-se a responder o que seria a cavalaria e quais as percepções sobre ela em finais da Idade Média. Para isso, a seguir o autor analisa no Capítulo I uma série de fontes dos séculos XIV e XV, notando desde logo como a maior parte delas são originárias da corte régia (já voltaremos a este ponto) e como o estudo das percepções da aristocracia é muito difícil, a que acresce ainda a dificuldade linguística de a documentação medieval portuguesa e mesmo a terminologia moderna não distinguir o sistema ideológico de soldados a cavalo, ao contrário do inglês ou francês. A seguir, no Capítulo II a cavalaria é analisada como um sistema ideológico com escala internacional e um código de comportamento que regulava o grupo nobre, quer na sua definição, quer na sua relação com a Coroa. O capítulo III, por sua vez, é mais descritivo na sua maioria, incidindo nos dados conhecidos acerca dos rituais da cavalaria em Portugal, como os rituais de investidura, a não existência de ordens de cavalaria ou as justas e torneios, e termina com uma interessante discussão acerca das Cruzadas Tardias em Portugal e de como se enquadrariam à luz do sistema ideológico estudado, onde se nota no estudo dos pareceres dos infantes para expedições como a de Tânger (1437) ou Alcácer-Ceguer (1458) uma aceitação dos princípios da guerra santa e da cavalaria, mas uma falta de unanimidade absoluta quanto à viabilidade da guerra em África e das suas vantagens para o reino.


Sem querer fazer grandes “spoilers”, gostaria de reflectir mais aprofundadamente sobre alguns aspectos e conclusões da obra, principalmente dos Capítulos I e II, por serem geralmente os mais abstractos, para além de se relacionarem com outros tópicos de bastante interesse pessoal. Para começar, a cavalaria era um sistema ideológico de origem feudal com 4 valores fundamentais como base, de certa maneira comuns a muitas outras sociedades pré-industriais, mas combinadas de uma maneira original: a força ou ardideza, a lealdade, a obediência e prudência, com ênfase para a primeira na documentação medieval. O que ressalta à vista mesmo do leitor mais distraído é o modo como a casa real portuguesa se apropria desse sistema ideológico, o que é visível no facto de quase todas as fontes sobre a cavalaria nos séculos XIV e XV virem da corte régia, e reformula-o de modo a regular as suas interacções com a nobreza do reino. Esta reformulação ocorria tanto no sentido de a renovar como de a controlar através de um sistema que respaldasse a lealdade devida ao soberano e afirmasse o monopólio estatal da força, redireccionando as energias guerreiras para objectivos determinados pelo soberano. Ora bem, estas são características essenciais da construção dos Estados Modernos nos séculos XIII-XV. E outra observação pertinente, a meu ver, é que esta assunção régia dos ideais cavaleirescos de certa forma espelha a lenta apropriação e controlo régio de muitos outros aspectos culturais tradicionalmente da nobreza ou até do clero, como a historiografia ou a heráldica (esta um pouco mais tardia), só para dar dois exemplos.


Contudo, a nobreza não assiste a este processo de forma passiva, usando a cavalaria como instrumento de coesão, tanto dentro do reino como até com outros nobres fora dele (daí até a ideia de “internacional” cavaleiresca avançada no livro, perdoando-se o coloquialismo), definição da identidade e justificação da existência de um grupo de outra forma diverso, promovendo assim a sua solidariedade nos níveis vertical e horizontal. A este respeito, o árduo trabalho do Miguel Aguiar de procurar resquícios de uma identidade cavaleiresca na tumulária medieval portuguesa, apesar do problema de esta nem sempre se assumir preto no branco, permite estabelecer que, junto de certos sectores nobiliárquicos, os ideais cavaleirescos vindos da corte régia seriam assimilados, pelo menos parcialmente no relativo à ardideza, embora não se consiga avançar muito mais por razões de exiguidade das fontes usadas.


Assim sendo, uma outra observação que gostaria de fazer é a de que é errado ver a cavalaria tardo-medieva em reis como Afonso V de Portugal como um mero devaneio anacrónico, como se o monarca fosse um “um monarca de tipo medieval já encravado na Idade Moderna” (Veríssimo Serrão) ou tivesse “sido educado no apreço dos grandes feitos e epopeias arcaicas à custa do presente e do pragmatismo governativo” (Armindo de Sousa). Isto só para citar dois autores com frases bonitas, mas não menos representativas da historiografia portuguesa no século XX, que tentava maioritariamente impor de forma anacrónica conceitos de modernidade e medievalidade, no fundo partindo de ideias feitas. Juntando-se a isto uma má compreensão do neo-senhorialismo (voltamos ao anacronismo!) e das campanhas militares do rei, não ajudada de todo pelo fiasco da Guerra de Sucessão Castelhana ou pelo tratamento dado pela historiografia renascentista e posterior, compreende-se assim a injustificada visão deste monarca como um rei fraco, “triste” ou incompetente.


Nisto, creio que Miguel Aguiar, indo ao encontro também da revisão feita por Saul Gomes na sua biografia do monarca, ajuda a lançar outras bases para a compreensão da realeza tardo-medieval e das suas estratégias de governo em finais da Idade Média.


Por fim, e em resposta ao repto do autor no epílogo, gostaria de lançar as seguintes questões. Por um lado, seria interessante analisar com maior profundidade as visões clericais portuguesas sobre a cavalaria, mas infelizmente as fontes não são exactamente abundantes e obrigaria a um trabalho muito extensivo nos arquivos portugueses sem garantias de grande sucesso. Por outro, seria interessante reanalisar relatos como o de Alfarrobeira em Rui de Pina, os de Fernão Lopes ou os da “Crónica do Condestabre” para se perceber em que situações seria considerado aceitável para um cavaleiro retirar a sua lealdade e obediência ao seu senhor, nomeadamente o rei, consolidando assim a historiografia no relativo ao pensamento político tardo-medieval, nomeadamente quanto à legitimidade régia ou a falta dela.


Para além disso, uma ausência (apesar de o autor usar a fonte a seguir referida com outros fins) que seria interessante de suprir é uma análise mais detalhada das narrativas dos Livros de Linhagens do Deão e do Conde D. Pedro, vozes privilegiadas da nobreza e dos seus valores no século XIV, a partir da perspectiva do sistema cavaleiresco: só para dar dois casos, a história do rapto da rainha D. Mécia por Raimundo Viegas de Portocarreiro, já estudada por José Mattoso, e a da lenda do Fernão Mendes (II) de Bragança são a este respeito muito interessantes, embora se tenha de ter em conta como os valores de lealdade ou ardideza nem sempre estão necessariamente associados à cavalaria. ~ José Luís Pinto Fernandes



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