Cartas de jogar da Era Medieval e Renascença
- InfoBlog de JD
- 1 de jun. de 2019
- 7 min de leitura
Atualizado: 12 de out. de 2021
Um artigo original de 'Repensando a Idade Média':
Os baralhos de cartas chegaram à Europa vindas da Ásia através dos Mamelucos do Egipto durante o século XIV, fazendo a sua primeira aparição em Itália, e daí, espalhando-se pelo resto da Europa a partir da segunda metade da centúria de 1300. Os problemas levantados com o vício do jogo e a ociosidade, encorajados por esses “cartões ilustrados do diabo” (como lhes chamavam na época alguns religiosos), resultando em leis anti-jogo como em 1367, quando tiveram a sua primeira proibição na cidade de Berna, na Suíça, demonstram a rapidez com que as cartas ganharam popularidade na Idade Média. Poucas cartas de baralho medievais sobreviveram, já que eram objectos tácteis, embaralhadas, jogadas e negociadas até se deteriorarem com o toque.
Segundo disse o curador Timothy B.Husband do Departamento de História da Arte da Universidade de Yale: "No final da Idade Média e nos primeiros tempos da Idade Moderna, a prática de cartas era amplamente apreciada em todos os níveis da sociedade, talvez porque fosse mais desafiadora do que os dados e outros jogos de sorte ou azar e menos cerebral que o xadrez".
Assim, enquanto a popularidade dos jogos de dados foi diminuindo durante o século XV, as cartas de baralho tomaram o seu lugar. Havia uma enorme variedade de tipos diferentes de jogos de cartas e a complexidade de alguns deles era incrível. Existe uma razão para um número tão grande de jogos: esse passatempo, como era frequentemente proibido, assim que um jogo era inscrito na lista proibitiva, no dia seguinte fazia-se uma pequena alteração e começavam a jogá-lo com um novo nome.
Os registos indicam as datas de algumas proibições das cartas de jogar em cidades como Basileia (1377), Nuremberga (1380) e Antuérpia (1382).
NAIPES E FIGURAS:
Cada reino adoptou estilos diferentes de naipes, com nomes distintos, assim, se os nomes dos naipes e das figuras dos baralhos tradicionalmente aceites nos países latinos, incluindo em Portugal, vieram do Italiano "spada" (espadas), "coppa" (copas ou cálices), "bastone" (paus) e "denaro" (ouro), nomes que ainda hoje são correntes, em França as figuras eram representadas de forma um pouco diferente com alabardas, trevos, dardos e corações. Essa discrepância acentuou-se quando o baralho de tipo francês se tornou o padrão comum de cartas em toda a Europa e no mundo, a partir do século XIX. Muito antes disso, na Idade Média tardia não era assim, e havia um grande universo de tipos de sinais e figuras, produto do rico imaginário dos artistas e do gosto pelo fantástico que grassava na época: ervilhas, rosas, uvas, romãs, livros, macacos e outros animais, motivos florais, cenas cómicas ou de censura social, etc. Exemplos disso são os baralhos de produção alemã do século XV ou o baralho vieenenses de 1460 que apresentavam as cores dos reinos húngaro, checo, austríaco e francês.
NA PENÍNSULA IBÉRICA:
Tal como no resto da Europa, as cartas chegaram à Península Ibérica na segunda metade do século XIV, por influência árabe. Inclusive a palavra "naipe" é emprestada de "nā'ib", o nome que os Mamelucos davam ao baralhos. O registo mais antigo de naipes vem de um dicionário de rimas do rei Aragonês Jaime II, em 1371, mas sem qualquer contexto ou definição. No entanto, já em 1380, o naipero (fabricante de cartas) era uma profissão reconhecida em Aragão, e em 1382 e 1384 os jogos de cartas foram proibidos nas cidades de Barcelona e Valência, respectivamente.
Estas primeiras cartas que surgiram na Ibéria eram em tudo idênticas às jogadas em Itália e no mundo árabe e eram até chamadas de "naipes mouriscos". Ao contrário dos baralhos italianos, as figuras das "espadas" são rectas e os "paus" parecem-se mais com porretes rudimentares do que com bastões cerimoniais, as espadas e paus também não se cruzam nas cartas numeradas (excepto no baralho de estilo "português", que veremos mais adiante). Cada carta tinha um contorno para diferenciar o naipe: as copas têm uma interrupção, as espadas duas, as paus três e o ouro nenhuma. Esta marca é chamada "la pinta" e deu origem à expressão: le conocí por la pinta (reconheci as suas marcas). Ambas as convenções mencionadas acima também são praticadas em Malta, que antigamente utilizava baralhos de estilo português.

O BARALHO "PORTUGUÊS":
Chegadas a Portugal provavelmente na época do rei D.Fernando, se não até antes, as cartas de jogar tornaram-se tão populares que deram origem a uma vasta produção nacional de baralhos ao longo dos séculos seguintes. Nos séculos XIV e XV os baralhos do chamado tipo português eram bem conhecidos nos reinos vizinhos de Castela e Aragão e também em Itália. A sua principal característica mostrava espadas rectas e paus nodosos como os baralhos castelhanos, mas cruzava-os como os baralhos italianos, os reis estavam sentados e alguns sotas eram distintamente femininos. O parente sobrevivente mais próximo do baralho português é o tarot siciliano que tem essas características menos para os ases.
No baralho português, no entanto, os paus lembram fortemente os bastões de pólo das cartas dos mamelucos, ao contrário dos bastões cerimoniais das cartas italianas e dos bastões ásperos normalmente encontrados nas cartas castelhanas. Naipes latinos (com copas, espadas, moedas e paus) também foram usadas em Portugal até ao final do século XIX e início do século XX, quando foram abandonadas em favor do baralho francês. Os nomes dos naipes medievais foram atribuídos aos novos naipes - esta é a razão pela qual os nomes portugueses não coincidem com os desenhos de estilo francês.


REI, CAVALEIRO E SOTA:
As três cartas de rosto de cada naipe nos baralhos portugueses medievais tinham figuras semelhantes ao valete, dama e rei no baralho francês actual e eram classificadas de forma idêntica: o Sota, que retratava um escudeiro, o Cavaleiro e o Rei, respectivamente. Isso deu origem a algumas diferenças na atribuição de valores a cada figura específica em relação ao baralho francês: as novas cartas de rosto (Rei, Rainha, Valete) tinham que combinar com as antigas (Rei, Cavaleiro, Sota). A figura do rei era óbvia, mas a rainha é hoje detida como carta de valor inferior porque algumas antigas Sotas portuguesas eram do sexo feminino, assim, o Valete foi pensado para ser o Cavaleiro. Temos então que nos jogos tradicionais portugueses as cartas ficam classificadas deste modo: Rei-Valete-Rainha, correspondentes às figuras medievais Rei-Cavaleiro-Sota, ao contrário dos baralhos franceses que apresentam Rei-Rainha-Valete.
JOGOS MAIS POPULARES:
Entre os jogos medievais mais populares tínhamos o "Triunfo", a "Arrenegada", a "Bisca" e a "Sueca", cujas regras escritas só surgiram nos séculos XVI e XVII mas que já se jogavam pelo menos desde o século XV. A "arrenegada" (correspondente ao "ombre" em Castela), foi o primeiro jogo em Portugal que introduziu apostas em dinheiro, nos formatos semelhantes ao póquer ou ao vinte-e-um (blackjack).
O "Triunfo" é jogado com parceiros dois a dois, sentandos em frente um ao outro, escolhidos por cartas de desenho do baralho com as duas mais altas e as duas mais baixas juntas. Cada jogador recebe nove cartas com a carta do topo do estoque remanescente de 12 viradas para revelar o naipe de trunfo. Se a carta exposta for um Ás ou uma carta, o dealer tem o direito de trocar por uma carta na mão e ganhar três pontos. Os jogadores devem seguir o exemplo, se não tiverem esse naipe, eles podem jogar uma carta de outro naipe. Jogadores com uma mão fraca podem conceder a qualquer momento e forçar um redeal, mas isso é considerado perder essa mão em particular. Este jogo foi pensado para se irem aumentando as apostas antes de cada jogada. Cada carta vale 1 ponto e os pontos são contados após cada jogada, se um lado deixar de adicionar pontos, eles não serão contados. O lado que ganha uma mão recebe seus pontos por aquela mão em particular dobrada. O primeiro lado que obtenha 32 pontos ganha.
"TAVOLAGENS", CASAS DE JOGO NO PORTUGAL DO SÉCULO XV:
Resta-nos alguns traços da existência de cartas de jogar no Portugal do século XV, embora nem os reis D.João I nem D.Duarte os mencionassem. Eram ao que parece mais populares entre os humildes do que entre os poderosos e podíamos encontrá-las nas "tavolagens", casas de jogo antepassadas dos casinos ou dos cabarés de hoje, onde se bebia, se jogava a dinheiro e se encontravam mulheres de má vida. De tempos a tempos eram proibidas essas tavolagens, a primeira lei repressiva que se conhece data do reinado de Afonso IV (1325-1357), onde o rei proibia que existissem tavolagens, quer públicas, quer particulares, sob pena de severa multa.
A medida, ao que parece, não surtiu grande efeito. D.Fernando renovou a interdição e D.João I proibiu todos os jogos a dinheiro. O regente D.Pedro incluiu a interdição de cartas de jogar nas ordenações de 1446. Mas as tavolagens renasciam sempre, se é que alguma vez deixavam de existir. Em 1490, estando o rei D.João II em Évora, e "sendo certificado que em Lisboa, nas casas de um Diogo Pires, cavaleiro que se dizia de pé (...) se jogavam dados e cartas e outros jogos, com que Deus Nosso Senhor era desservido, o seu nome e de seus santos arrenegado e blasfemado (...) mandou que com pregões de Justiça, fossem, como foram, de dia e publicamente queimadas".
Texto de PEDRO ALVES






LINKS ADICIONAIS:
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
- Marques, A. H. de Oliveira: A Sociedade Medieval Portuguesa: Aspectos de Vida Quotidiana. ISBN: 9789725622704 Ano de edição ou reimpressão: 04-1987 Editor: Livraria Sá da Costa Editora
- The World in Play: Luxury Cards, 1430–1540, Metropolitan Museum of Art’s Cloisters (Margaret Corbin Drive, Fort Tryon Park, Manhattan).
- Chatto, William Andrew: Facts and Speculations on the Origin and History of Playing Cards, J R Smith, London, 1848
- D'Allemagne, Henry René: Cartes à Jouer du XIVe au XXe Siècle, Librairie Hachette et Cie, Paris, 1906, excerpts re-published in Antique Playing Cards: a Pictorial Treasury, selected and arranged by Carol Belanger Grafton, Dover Publications, 1996
- Denning, Trevor: The Playing-Cards of Spain, Cygnus Arts, London, 1996
- Tilley, Roger: A History of Playing Cards, Studio Vista, London, 1973
- Agudo Ruiz, Juan de Dios: Los Naipes en España, Diputación Foral de Álava, 2000
- Husband, Timothy B: The World in Play, Luxury Cards 1430-1540, Metropolitan Museum of Art, New York, 2015
- Hargrave, Catherine Perry: A History of Playing Cards and a Bibliography of Cards and Gaming, Dover Publications, New York, 1966
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