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As feiras medievais e os problemas da recriação histórica em Portugal

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Uma recriação 'estorica' da corte de Dom Afonso Henriques, no seculo XII, onde se pode ver varias personagens vestidas com roupa do seculo XV/XVI, sapatos modernos, um homem-de-armas com um turbante indiano, outro com peças de fantasia, sem falar no próprio Afonso Henriques com uma cota-de-armas de fantasia, cervilheira sem coifa de protecção e coroa de fantasia, entre mais pormenores...

As feiras medievais e os problemas da recriação histórica em Portugal, uma perspectiva crítica.

O texto hoje apresentado será um pouco diferente do habitual, na medida em que não pretende propriamente divulgar historiografia, mas sim reflectir sobre os problemas da prática da recriação histórica em Portugal e o modo como está “capturada” maioritariamente por certos interesses potencialmente prejudiciais.


Em primeiro lugar, passemos em revista o problema mais premente: pura e simplesmente, estes eventos são na sua esmagadora maioria para fazer negócio, não para recriar o período supostamente alegado. Comecemos pelas bancas: quantos daqueles produtos estariam num mercado medieval? E, mesmo que estivessem disponíveis essas mercancias ou similares, seriam representativas? Basta referir como se encontram produtos como “ouro inca” e outros completamente anacrónicos ou com materiais modernos, a que se junta a publicidade de grandes empresas e umas barraquinhas à porta de alguns destes eventos. Mesmo às vezes a própria recriação pode ser uma forma de anunciar produtos da terra de uma forma desonesta: para dar um exemplo anedótico, mas bem real, a Viagem Medieval em Santa Maria da Feira chegou a usar um espectáculo sobre os conflitos entre D. Dinis e o irmão Afonso em 1287 para divulgar a fogaça de uma maneira completamente exagerada, ainda para mais quando nos lembramos que é uma criação supostamente da segunda metade do século XVI… Ou seja, mesmo as organizações embarcam na onda da comercialização. Isto é particularmente visível também no modo como tentam cobrar o máximo que podem aos visitantes, desde as entradas com pulseiras até à visualização certos espectáculos/espaços (mesmo que geridos por voluntários…), e ainda para mais quando nem sequer se têm em atenção as realidades dos orçamentos familiares. Bem se pode alegar que os actores precisam de ser pagos e etc., mas o facto é que várias feiras fazem enormes lucros e muitos da mão-de-obra é, para dizer o mínimo, barata, pelo que isso não é desculpa suficiente. Sem nos querermos armar em comunistas de serviço, questionamos a necessidade de preços tão altos ou a ausência de pacotes familiares mais comportáveis para gentes mais pobres, por exemplo, e achamos que este caminho tem de ser repensado. Afinal, o que distingue as feiras medievais das festas populares? O facto de apresentarem uma aparência “medievalizada”? Se for para isso, não consigo ver grande utilidade ou futuro a longo prazo, quando a moda do “medieval” passar fora do prazo…


Também à medida que estes eventos foram ganhando popularidade, o poder político envolveu-se cada vez mais, criando ou dando suporte a várias feiras. É precisamente o suporte político que explica, em conjunto com a moda de tudo que tenha que ver com a Idade Média, o crescimento bacteriano da recriação histórica medievalista no país, a ponto de se tornar comum dizer que há hoje mais feiras (anuais) do que havia na própria Idade Média... Contudo, como os economistas dizem, não há almoços grátis: os autarcas, com algumas excepções dignas de registo, não querem saber da História para coisa nenhuma. Usam a recriação como instrumento turístico de desenvolvimento do território, o que não é necessariamente ilegítimo, e para moldar identidades locais e nacionalistas, que podem não ser completamente estanques no modo como interagem entre si. O bairrismo é muito visível em todos os eventos, embora seja mais tóxico em alguns como a Feira Afonsina em Guimarães, onde Afonso Henriques é usado de forma errónea para promover identidades locais, nomeadamente a velha máxima (altamente problemática) do “Aqui Nasceu Portugal”, de uma forma que se intersecta com algum nacionalismo. Exemplos paradigmáticos do que afirmo quanto ao bairrismo são o tratamento de aspectos como o nascimento de Afonso Henriques ou o baptizado (aconteceu uma recriação no ano passado na Igreja de São Miguel do Castelo, que para quem não sabe é da segunda metade do século XIII…). Mas voltando ao nacionalismo, apesar de um pouco mais encoberto, é facilmente observável quando se analisa o discurso à volta da identidade portuguesa nestes eventos, com uma glorificação de uma certa grandeza portuguesa, ou com o modo como o “outro”, quer se trate dos castelhanos ou dos muçulmanos, costuma ser tratado de forma hostil (com vários dos eventos a suscitarem a audiência directa ou indirectamente contra eles), embora no segundo caso alguns eventos possam dar alguma ênfase à questão da coexistência entre comunidades. Mesmo assim, no caso islâmico, fazem sempre o mesmo erro na esmagadora maioria das recriações: imaginam os árabes do al-Andalus como nómadas vivendo em tendas e outros clichés orientalistas. Também, conhecendo um pouco quem anda por estas feiras a fazer recriação, e sem qualquer intenção de me referir a muito boa gente que conheço, fica-se com a impressão de que muitos têm certos ideais de extrema-Direita ou são vulneráveis a ela. Embora um estudo sociológico e antropológico mais apurado seja necessário, julgo que estes eventos são frequentemente ambientes ideais para a proliferação de ideologias extremistas em Portugal.


Por fim, queria mencionar um ponto que não posso deixar de frisar. Para além de erros factuais, especialmente quando as organizações e recriadores não têm profissionalismo/experiência ou estão literalmente a ignorar os factos, temos ainda outro perene problema: a recriação histórica em Portugal não sabe reconstruir espaços e quotidianos em devidas condições, quando recriá-los poderia ser a componente mais importante de educação ao público ou até uma fonte importante de arqueologia experimental. As vivências quotidianas (altamente dependentes do contexto quotidiano e regional) são constantemente postas em segundo plano de grandes acontecimentos/personagens ou destacadas de forma descontextualizada, pegando em certas personagens como prostitutas, “bruxas” (o que quer que isso seja) ou outros quejandos anacronicamente. Julgo que isto possa estar ligado com o modo como as companhias de teatro contratadas ou voluntárias funcionam, com uma pesquisa superficial e destaque em tudo o que possa ser cómico (atenção que este último pode não ser sempre negativo). Também poderia falar do vestuário historicamente incorrecto ou com materiais inapropriados, embora esta falha também possa vir parcialmente de um certo atraso da historiografia portuguesa quanto ao vestuário medieval, da má representação de espaços como castelos como sendo habitações nobres quando a sua principal função era militar (um erro muito comum nas feiras medievais), das representações preconceituosas e descontextualizadas da mentalidade medieval (especialmente da religiosidade!), da música frequentemente anacrónica ou do modo como muitos assuntos são praticamente ignorados, indo das comunidades judaicas às questões ligadas com a exploração da terra e o senhorialismo: um bom exemplo seria a recriação do cobro de exacções senhoriais.


Mesmo na área da guerra (aqui também inserida porque a guerra era frequentemente parte do quotidiano durante boa parte da Idade Média), que costuma estar fortemente representada, há erros sistemáticos na proporção em que certas armas ou armaduras são usadas: espadas por todo o lado, todos os guerreiros têm cotas de malha e etc. Isto para não referir asneiradas tão simples como introduzir chapas num contexto de século X, como já cheguei a ver. Concluindo, o que mais falta por aí é uma leitura aprofundada de obras como a “Sociedade Medieval Portuguesa” do Oliveira Marques e muitas outras mais recentes.


Com isto, não quero propriamente fazer um ataque gratuito às feiras medievais nem demolir grupos de recriação histórica, mas sim tentar alertar o máximo que possa sobre a situação, especialmente para o público em geral, pois só este tem grande poder de mudança quando o poder político falha redondamente sem ligar a cores partidárias. Se isto também chegar à consciência de mais alguém ligado mais a este meio, tanto melhor. A recriação histórica em Portugal tem um longo caminho para trilhar, incluindo com muitas das boas práticas dos países do Norte e Centro da Europa (não que sejam perfeitos), se quiser oferecer mesmo a capacidade de poder ajudar a educar o público de forma informal ao mesmo tempo que estimula o seu interesse na Idade Média, manipulando e (re)construindo construções populares do passado.



 

Publico aqui a resposta e opinião de Sancho Fernandes de Baguim, a este artigo e que ,a meu ver, é também muito válida:


"Há neste texto um grande equívoco que respeitosamente gostaria de denunciar. Um equívoco no qual eu próprio persisti durante algum tempo, muito difícil de desfazer mas muito compreensível que continue a confundir muita gente, dada a realidade do fenómeno aqui tão bem retratado.

Quando feiras medievais e recriação histórica aparecem assim juntas num mesmo pedaço de prosa, só o irreconcíliavel conflito entre as duas coisas o pode justificar.


Assim como a astronomia e astrologia não se fundem nem confundem, nem ciência com superstição, a mesma distinção entre recriação histórica e feiras medievais devia existir. São coisas incompatíveis. Não existe entre elas qualquer afinidade. Jamais se devem misturar.

As feiras medievais e a as criaturas que as povoam usurpam e aviltam a recriação, contaminam-na e matam-na. Quem se dedica à recriação histórica tem o dever de a proteger, tem o dever de a manter longe desses recintos, porque ela não resiste à contaminação, definha e morre no momento em que inala esses ares. São festas populares, sim. Apontar-lhes os vícios e defeitos há muito que deixou de fazer sentido.


Não se prega o "evangelho" de Beethoven em festivais de música pimba. Para quê insistir em juntar coisas tão opostas? A recriação histórica tem de encontrar o seu próprio caminho. Enquanto não o fizer, simplesmente não existe. Que caminho? Pois esse é o debate que se devia ter.

As feiras são de quem as promove e do povo que lá vai, estão no seu direito fazer delas o que bem entenderem. Não podemos exigir que se acomodem a conceitos que são a negação de tudo aquilo que realmente são. E os que se dizem recriadores não podem permitir que a recriação histórica seja anulada pela convivência com esses carnavais. No entanto é isso que os recriadores fazem a si próprios, sabotando o trabalho que pretendem desenvolver, insistindo teimosa e estupidamente em fazer parte desse mundo, acreditando que lhe pertencem e que esse mundo lhes deve alguma coisa. A feiras podem-se permitir tudo sem perderem nada, não há nada de tão anacrónico ou grotesco que nelas não possa encontrar bom agasalho. Já a recriação histórica deve ser estanque a tudo o que claramente não lhe pertença e deve expulsar toda a “intrusão” permitida pela ignorância e que a aprendizagem venha a revelar (porque recriação histórica deve ser aprendizagem e evolução).

Repito, são coisas incompatíveis. Não é possível nem desejável que haja “comércio” entre elas. Se queremos recriação histórica não podemos deixar que esses dois mundos se toquem. Existe essa convivência noutros países da Europa? Talvez até exista. Mas a diferença é que em todos os outros países existe recriação histórica sem feiras, que é quando se manifesta com mais fulgor, e é isso que nos falta. Tudo o que temos de mau existe em todos os outros países, a diferença é que não existe equivalência alguma com o que todos esses países têm de bom no que toca à recriação histórica medieval.

Salvar a recriação histórica medieval só depende dos recriadores. Enquanto os que se dizem recriadores participarem na farsa, nada mudará e de nada se podem queixar! Enquanto não acontecer esse cisma, a recriação histórica medieval simplesmente não existe."


 

Informação adicional:


‘Eventful Cities’ and Cities of Events – Medieval events in Portugal – A Comprehensive Study - Carla Alexandra Pereira Fernandes Delgado - Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Marketing e Promoção Turística



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