Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',
Muralha medieval de Lisboa (Século XI - 2018): crescimento e abandono de um dos maiores monumentos da capital de Portugal.
Antes de mais, queria agradecer a ajuda do professor Miguel Gomes Martins, membro do Repensando e um dos maiores medievalistas portugueses, o seu contributo foi extremamente importante na recolha de fotos e informação sobre as torres e trechos de muralha ainda sobreviventes desse complexo de defesa da maior cidade do reino.
Existem três grandes períodos de construção defensiva ainda sobreviventes: a chamada cerca "moura", mais antiga. A cerca de D.Dinis (de fins do século XIII, inícios do século XIV) e a muralha "Fernandina", da década de 1370.
Hoje em dia, infelizmente, a cerca sobrevivente é completamente ignorada, desprezada e abandonada pelos poderes locais da cidade, sendo que não existem quaisquer informações sobre a sua história para os turistas que visitam Lisboa. Além disso, a Câmara Municipal ainda aceita e promove a sua demolição, mas já lá vamos, antes disso façamos um périplo pela sua cronologia.
CERCA "MOURA" (século IV D.C - século XIII):
A cerca velha de Lisboa, erroneamente conhecida por cerca "moura", trata-se da primitiva muralha de Lisboa e remonta ao final da época romana. Defendia o núcleo urbano da cidade de Lisboa na época medieval, desde os períodos Suevo, Visigótico e Islâmico até à construção da muralha Fernandina, já no século XIV. Ficou mais conhecida por cerca "Moura" por se julgar até há pouco tempo que a sua construção datava do período muçulmano, quando na verdade estes apenas reforçaram e mantiveram o traçado do anterior período Romano. A cerca velha nascia no Castelo de São Jorge nas proximidades da Porta de São Jorge, e pela Porta da Alfôfa descia por São Crispim, Sé, e Rua das Canastras à Porta do Mar antiga; ia correndo beiramar até São Pedro de Alfama, donde, pela Adiça, subia à Porta do Sol, a incorporar-se com a do Castelo, junto à Porta de D. Fradique. Contava a cerca moura com doze portas, para sua serventia. Ainda existentes temos a porta de Martim Moniz, a porta do Chafariz d'el-Rei, a porta do Mar a São João, a porta de São Pedro e a porta do Arco Escuro.
MURALHA DE D.DINIS (séculos XIII-XIV):
Com o desenvolvimento e crescimento de Lisboa nos cento e cinquenta anos que se seguiram à conquista da cidade pelos Cristãos o arrabalde ocidental torna-se um importante centro mercantil, afastando-se, contudo, da protecção que a Cerca Velha conferia. Em face do potencial perigo que as incursões oriundas da entrada do rio Tejo poderiam causar, pretendia-se agora garantir a defesa da área que fora sendo conquistada ao rio. É nesta Lisboa, ainda presa ao passado medieval mas em processo acelerado de expansão, agitada e cobiçada, que, no ano de 1294, nascerá uma nova fortificação na Ribeira, a que hoje chamamos de D.Dinis.
Construída entre o referido ano de 1294 e a primeira década de 1300, esta pode associar-se à necessidade prioritária de defender apenas as margens desprotegidas do Tejo, em particular a Rua Nova dos Mercadores, alvo preferencial dos ataques exteriores. Ao não delimitar o perímetro da cidade, mas criando apenas um dique na zona baixa, é possível presumir-se que as eventuais incursões poderiam ser obstaculizadas simplesmente pela colocação de uma barreira física e, assim sendo, que os expectáveis ataques teriam um carácter pouco estruturado e efémero. Num ataque em larga escala, com cerco, a zona norte estaria completamente desprotegida, sendo a criação de uma barreira física a sul pouco ou nada eficaz. Este problema apenas será resolvido com o gigantesco investimento feito na Cerca Fernandina passados apenas 80 anos, em 1373-75, o que não deixa de lhe conferir um tempo de vida curto enquanto estrutura defensiva. Este fenómeno entender-se-á à luz das questões estratégicas de uma época marcada pelo clima de disputas com Castela. Já no séc. XIV, as tropas castelhanas chegaram a cercar Lisboa, pondo a descoberto a necessidade de defender os arrabaldes entretanto construídos fora dos perímetros amuralhados, tanto o oriental como o ocidental.
MURALHA FERNANDINA (1373-1375):
Governando El-Rei D.Fernando I, vendo este a necessidade de que padecia Lisboa de fortificação, danificada a cerca velha por prejuízos que pouco antes lhe haviam feito os castelhanos, mandou cercar a cidade de novos muros e altas torres no ano de 1373, por conselho de João Anes de Almada, seu Vedor da Fazenda. Com tanta rapidez se operou na edificação desta muralha, que esta se concluiu no ano de 1375, apenas dois anos após o início da obra.
Contava toda a muralha cinco mil passos de circunferência, e a cidade de muros-a-dentro, três mil e cem de comprido, e mil e quinhentos de largo. Nela havia 46 portas, e 77 torres que a defendiam, algumas das quais ainda se vêem em diversas paragens mais ou menos arruinadas, com seus pedaços de muro em igual estado. Esta muralha foi fundamental na defesa de Lisboa durante o cerco castelhano de 1384, quando mesmo com um forte exército de cerca de 20.000 homens o rei Juan de Castela não obteve nenhum sucesso, mesmo após inúmeras tentativas de assaltos frontais às muralhas e torres de Lisboa.
O jogo da Péla e a calçada com o mesmo nome - Blog Paixão por Lisboa
ABANDONO E FALTA DE PROMOÇÃO NO SÉCULO XXI:
Durante grande parte dos últimos 200 anos, várias portas e torres da muralha foram demolidos, especialmente após o terramoto de 1755. A pressão do crescimento da cidade no século XIX também contribuiu para a destruição de grande parte do conjunto. Mas o maior atentado acontece nos nossos dias, onde o abandono, a incúria e o desleixo na sua preservação continuam a fazer estragos. A edilidade não toma nenhumas acções de manutenção nem de promoção e ao invés ainda patrocina a continuação da destruição dos trechos remanescentes, como em Santa Apolónia junto à estação ferroviária ou o recentemente descoberto alambor no bairro da Graça que será irremediavelmente perdido com a construção de um elevador funicular. Estas atitudes fazem parte de um hábito mais geral de completo desprezo pelo património medieval português por parte das autoridades políticas e culturais do país aos quais nós administradores Lusos aqui no Repensando daremos toda a visibilidade possível, para além das óbvias violentas críticas, independentemente dos partidos políticos que estiveram à frente dos destinos das cidades históricas em Portugal, visto que estas vergonhas vão para além de qualquer regime político. Um país que não toma conta dos seus tesouros históricos é um país sem qualquer futuro, acrescentando a isso o problema da pobreza de mentalidades, e toda a gente sabe que pior que ser pobre de dinheiro...é ser pobre de espírito!
- Pedro Alves.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS:
Funicular da Graça põe em risco estrutura medieval única no país - Jornal Público
Cerca Moura de Lisboa afinal é romana - Jornal Público
SANTA APOLÓNIA - SONDAGENS ARQUEOLÓGICASPLANO GERAL DE DRENAGEM DE LISBOA - RELATÓRIO FINAL - Lisboa, Março de 2017
BIBLIOGRAFIA:
Castro, João Baptista de (1763). Mapa de Portugal antigo e moderno. [S.l.]: Francisco Luiz Ameno. 77 páginas
Moreira, António Joaquim (1838). «Antigas Portas de Lisboa, e sua Cerca». O Panorama. II (78)
Obrigado pelas informações! Morei em Lisboa, em 2014, porém, não fiz o percurso das cercas. Pretendo fazê-lo, logo passe a pandemia e possa retornar ao seu país, onde tenho grandes amigos e um carinho por toda a gente. Abs., Ivar