Um artigo original de 'Repensando a Idade Média':
DA VISIGÓTICA À CAROLÍNGIA:
A evolução da escrita em Portugal e na restante Península Ibérica dos séculos IX a XII.
A sua relação com as influências culturais e religiosas regionais e de além-Pirinéus.
Tomando atenção à particularidade cultural Ibérica, de cunho marcadamente regional, mas mesmo assim aberta a influências exteriores, é natural que essas evoluções tenham tido particular impacto na escrita e no estilo de letra usados na Península. Inicialmente apenas destinados às elites, os livros medievais seguiam os cânones fonéticos que mais impacto tiveram na sua construção, nomeadamente o tipo de escrita Latina chamada de "Uncial", bastante parecida às letras capitais ou letra de jornal que podemos ver hoje em dia um pouco por todo o lado, sem no entanto descurar o lado artístico da grafia, visto que esses livros eram essencialmente copiados à mão por clérigos em ambientes monásticos. Ao torná-la uma das obrigações diárias do monge, as ordens monásticas, sobretudo os Beneditinos, deram desde a Alta Idade Média uma forte conotação espiritual à leitura. O livro torna-se símbolo de saber e de autoridade, mas também de poder. O conhecimento da vida intelectual e da difusão da cultura na sociedade medieval, não podem, por isso, deixar de ter em conta a escrita, o fabrico e a circulação do livro. É nessa relação entre utilidade e arte que seguirá a evolução da escrita durante a Idade Média.
ESCRITA VISIGÓTICA, UM ESTILO MARCADAMENTE IBÉRICO:
Este tipo de escrita foi usada entre os séculos VIII e XII na Península Ibérica e na província eclesiástica da Septimânia, localizada ao sul da actual França. Também conhecida como "littera toletana" (letra toledana), apesar do seu nome, evoluiu a partir da cursiva Romana, uncial e semiuncial, apoiando-se sobre uma escrita de transição entre a romana e a visigótica propriamente dita, conhecida como "visigótica primitiva" ou "visigótica primeira", que aparece datada a partir do século V, ainda que não adquira o seu cânone até o século VIII.
Ao contrário de outros povos bárbaros, os Visigodos possuíram uma escrita própria, o alfabeto ulfilano, limitada a usos litúrgicos e que não estava difundida socialmente. Porém, cedo tiveram de adoptar os usos romanos, abandonando o arianismo, tornando-se à fé católica, e adoptando o latim e o alfabeto latino. Durante a maior parte do período Visigótico existiu uma continuidade gráfica com o mundo Romano, pois continuaram usando as escritas do Baixo Império (uncial, semiuncial e minúscula cursiva) para copiar livros e para os documentos da administração do reino.
No entanto, embora se denomine por escrita visigótica, o período do seu maior uso e desenvolvimento não pertence ao Reino Visigótico, mas sim aos primeiros séculos da Reconquista.
A morfologia das letras, as ligaduras e alguns nexos são diferentes segundo for uma escrita visigótica redonda, executada devagar, ou ante uma escrita visigótica cursiva, de traçado mais rápido.
Alguns exemplos da morfologia visigótica são: - O «a» cursivo semelhante ao «e» que se executam ambas com uma forma similar a um 3 feito ao contrário; - O «a» redondo similar a um «u»; - O «r» rotundo similar a um 2; - O «g» redondo de clara raiz semiuncial;
Algumas letras têm duas morfologias:
O traço superior do «t» pode formar um círculo à esquerda ou dois círculos, em cujo caso se confunde com o «g» da cursiva;
Um «i» curto antecede as letras longas e um «i» longo, que parece um "éle", as curtas;
De especial interesse para os linguistas tem a forma do «z», de onde evoluiria o «ç» de çedilha, muito usado hoje em dia na Língua Portuguesa.
A ESCRITA VISIGÓTICA EM PORTUGAL:
Os 94 códices provenientes da Biblioteca de Mão do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, hoje pertencentes à Biblioteca Pública Municipal do Porto (BPMP) são um testemunho vivo e dinâmico das evoluções da escrita em Portugal ao longo de pelo menos seis séculos. Alguns destes códices chegaram a St.ª Cruz vindos de outros Mosteiros portugueses, de Espanha, de Itália ou de França, mas uma boa parte foi elaborada no próprio Mosteiro.
O "scriptorium" de Santa Cruz nasce no século XII sob o signo da escrita visigótica de transição, mas florescerá sob as múltiplas formas da escrita carolíngia e mais tarde da gótica. Os mais importantes Mosteiros possuíam bibliotecas com dezenas e por vezes centenas de volumes. No Portugal medieval os Mosteiros de Santa Cruz de Coimbra, Alcobaça, Lorvão, e São Vicente em Lisboa parecem ter tido bibliotecas com alguma dimensão. A maioria dos mosteiros portugueses deveria possuir um número considerável de livros, pelo menos os necessários para o serviço litúrgico. Contíguo à Biblioteca deveria existir um "scriptorium", cuja dimensão e actividade variava com a importância e riqueza do mosteiro, onde eram copiados e fabricados livros e documentos (mas em grande parte dos Mosteiros o claustro desempenhava todas estas funções).
O catálogo dos manuscritos de Santa Cruz permitiu refazer a história do "scriptorium" e da Biblioteca do mosteiro, sobretudo no que diz respeito ao seu início: a escrita visigótica, a escrita “nacional” da Península Ibérica, muito ligada à cultura moçárabe, sabemos que esteve aqui em uso até depois de meados do século XII, altura em que já se nota uma contaminação pela escrita carolíngia. A sobrevivência da visigótica de transição quase até ao século XIII parece explicar-se por uma deliberada vontade de afirmação de natureza político-institucional, enquanto que a fácil e quase repentina adopção da carolíngia e mais tarde da gótica se poderá explicar por uma certa proximidade de estilo entre todas estas.
Outra escrita “nacional” de que subsiste testemunho em St.ªCruz, é a Beneventana. Certamente nunca esteve em uso no "scriptorium", mas a Biblioteca possuía pelo menos um códice nesta escrita.
Em Portugal, os "scriptoria" das Sés de Braga e de Coimbra constituíram no século XI os principais centros onde a escrita visigótica estava em uso, o qual se prolongou durante o século XII e alastrou a outros locais da sua área de influência, como o Mosteiro de Lorvão. A visigótica atingirá o máximo da sua perfeição como escrita de livros, o seu declínio começa no século XI e, segundo a tradição, um concílio de Leão realizado no final desse século teria proibido a utilização da visigótica na escrita de livros sagrados e litúrgicos, sem dúvida como instrumento para a supressão do rito moçárabe, nessa altura a ser substituído pelo rito romano da reforma gregoriana.
Estas sobrevivências da visigótica, que contaminaram a chegada das novas escritas, em parte também explicam a total a permanência de uma forte tradição local e, porque não dizê-lo, talvez uma deliberada resistência à adopção da Carolíngia, pelo menos até meados do século XII, época em que começava a chegar a escrita Gótica. De facto, a vasta reforma litúrgico-cultural, de que a ordem de Cluny foi principal dinamizadora em Portugal onde propagou o uso da Carolíngia, incrementou a tendência centralizadora da Igreja Católica. Centralização que não se fez sem resistências, sobretudo em zonas periféricas. Não é por acaso que os manuscritos datados mais tardios escritos em visigótica provêm exactamente de Portugal, a saber: Santa Cruz, Alcobaça e Lorvão. Podemos dizer que à tardia morte portuguesa da visigótica de transição assistiram a carolíngia de modo fugaz e a gótica triunfante.
CHEGADA DA ESCRITA CAROLÍNGIA:
O estudo das escritas dos códices mostra uma notória influência dos ambientes monásticos e universitários franceses nos séculos XII e XIII, durante o primeiro século de existência do Mosteiro. É por esta via que as escritas Carolíngia (ou Carolina) e depois a Gótica escolástica penetram e se consolidam como escritas adoptadas nos "scriptoria".
Nos mosteiros portugueses deparamos com o domínio absoluto da escrita visigótica até 1127, ano em que surge o primeiro documento redigido em letra carolíngia. Apesar da presença deste primeiro testemunho de escrita de importação, continuaram a aparecer, até 1132, mais alguns documentos em visigótica redonda, progressivamente marcados pela pressão deste novo tipo de escrita. Apesar deste primeiro testemunho de adaptação à letra carolíngia, de mais fácil assimilação, estimulada não só pelas estreitas relações entre o Condado Portucalense ou, se preferirmos, o Portugal nascente, e os territórios da França até à região da Borgonha, e pela forte presença da Ordem Beneditina, mas também pelo exemplo dos livros litúrgicos importados da França, cuja multiplicação era imprescindível, desde que o arcebispo de Braga, São Geraldo, se empenhou na substituição da liturgia hispânica pela romana, no quadro da Reforma gregoriana, apesar de todos estes factores favoráveis ao desenvolvimento da escrita carolíngia, nos anos seguintes, continuamos a deparar com documentos escritos em visigótica redonda.
A ESCRITA BENEVENTANA, UM CASO PARTICULAR:
Até hoje tem sido ignorada o que parece ser uma importante influência da cultura italiana, via Universidade de Bolonha, mas também via chancelaria papal. Tal influência não é de estranhar dada a existência em St.ª Cruz e em Alcobaça de inúmeros diplomas provenientes da cúria papal e também porque certamente alguns dos monges do mosteiro estudaram direito canónico em Bolonha. Alguns manuscritos de St.ª Cruz provêm de "scriptoria" Bolonheses e há outros que foram escritos em St.ª Cruz seguindo aquele modelo caligráfico ou o modelo muito ornamentado em uso nas chancelarias. As relações com Itália, cuja existência e duração as escritas revelam, constituem um capítulo a abrir na história do Mosteiro de St.ª Cruz. No final da Idade Média também as escritas cursivas ganham terreno. Há uma maior pessoalização da escrita mas também um favorecimento desta técnica porque permite maior rapidez, traçando-se várias letras num mesmo movimento contínuo.
PEDRO ALVES.
Fontes Bibliográficas:
- JOSÉ FRANCISCO MEIRINHOS A escrita nos códices de Santa Cruz de Coimbra [Publicado pela Biblioteca Pública Municipal do Porto em 1995].
-José Marques, 2005
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