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A escravatura em Portugal durante a Baixa Idade Média

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


Andaluzes muçulmanos capturam cristãos (aqueles com as mãos atrás das costas) e seu gado, levando-os para uma de escravidão, iluminura de 'Cantigas De Santa Maria', século XIII

A escravatura em Portugal durante a Baixa Idade Média e a “Vita Theotonii”


Um dos pré-conceitos mais comuns em Portugal sobre o tópico da escravatura é o da sua ausência antes do começo do tráfico negreiro em 1441. Tal ideia, infelizmente, é fortemente contrariada pela documentação medieval. Pessoalmente, não tenho trabalhado muito esta área, mas fui compilando algumas informações sobre o assunto nas minhas leituras e julgo que será importante publicar algumas delas, até para contribuir para os actuais debates em Portugal e no Brasil.


Tal como José Mattoso assinalou muito bem em “Identificação de um País”, a escravatura nos séculos XI-XIII era um fenómeno ligado principalmente à guerra até meados do século XIII, sendo os cativos escravizados nos fossados contra o al-Andalus e empregados principalmente no serviço doméstico ou no artesanato nos centros urbanos, onde a sua fama em áreas como a sapataria ou a ourivesaria não tinha par neste período. Também tenhamos casos de escravos no mundo rural em menor grau, quer como serviçais dos mosteiros do Norte senhorial quer como colonos, onde eram usados de modo a aumentar as receitas do senhor no séculos XII-XIII.


Depois do fim da chamada “Reconquista” em 1249-1251 (aqui incluo também a conquista de Aroche e Aracena por Afonso III a Ibn Mahfoot de Niebla em 1251, apesar de estas terras não fazerem hoje parte do território português), o número de escravos aparenta ter declinado e a principal proveniência destes passou a ser magrebina ou granadina, mas sem excluir outras proveniências como as Canárias (guanches) ou até cristãos vindos do Leste europeu. Eram capturados quer em ataques corsários/piratas às costas do Norte de África quer à navegação islâmica, incluindo navios com peregrinos a fazer o Hajj a Meca, ou ainda comprados a partir do exterior ou até internamente. Aliás, nesta actividade corsária destacou-se em inícios do século XV o conde D. Pedro de Meneses como governador de Ceuta, havendo até um caso curioso de um processo judicial em Valência a envolver granadinos que foram libertados dos parceiros de expedição italianos do conde por causa das relações de paz existentes entre a Coroa aragonesa e o Reino de Granada. Portanto, bem antes dos escravos de origem sub-sahariana terem chegado a Lagos em 1441, o reino tinha uma longuíssima história de escravatura remontando pelo menos à Antiguidade…


A este propósito, também partilhamos um texto fundamental acerca do assunto: o excerto da “Vita Theotonii” em que S. Teotónio (1082?-1162) intercede com sucesso junto de Afonso Henriques assim como dos seus nobres e cavaleiros para libertar os cristãos escravizados aquando de um fossado por terras do al-Gharb al-Andalus, possivelmente o que deu origem à batalha de Ourique em 1139. Independentemente da questão do papel político do prior de Santa Cruz junto do rei, para o qual infelizmente só temos a sua “Vita” e esta pode exagerar a proeminência política do santo, a descrição é excelente como porta de entrada no mundo do hagiografado. Tal como noutros textos do género, pouco importa que tenha realmente ocorrido ou não, mas sim o facto de tal acção e o seu contexto serem críveis para os contemporâneos como uma descrição realista do seu universo. À luz desta representação do discípulo autor do texto, o mais impressionante neste texto seja a escravatura indiscriminada de cristãos e muçulmanos: para o caudilho régio e o seu bando, mais do que dilatar a fé cristã, com estes fossados pretendia-se ganhar saque no contexto de uma economia de fronteira e enfraquecer eventualmente os inimigos ao ponto de facilitar futuras conquistas que viabilizassem o novo reino de Portugal em construção. Note-se o contraste desta imagem face aos ideais de realeza da época e até a apresentação diplomática do rei português à Santa Sé, onde a chefia da luta contra os infiéis atingia uma dimensão chave como elemento legitimador da realeza de Afonso I. Também faço uma breve alusão à simpatia pró-“moçárabe” do santo, que remete para a atitude do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra a todos os níveis, incluindo nas suas práticas religiosas e na sua cultura letrada, adaptando-as à Reforma Gregoriana. É interessante constatar como esta atitude aparenta ser exclusiva face aos cristãos tanto neste texto como no resto da hagiografia peninsular da época: só para citar alguns casos mais pertinentes, é afirmado na “Vita” de Santo Olegário de Barcelona (1060-1137) que este deu a sua bênção a piratas barceloneses que atacavam embarcações muçulmanas, ou ainda, voltando à “Vita Theotonii”, o papel espiritual de Teotónio como protector de Afonso Henriques aquando do golpe de mão efectuado a Santarém em 1147.


Sem mais delongas, aqui vai uma tradução do texto, da autoria do Pe. Aires Augusto do Nascimento:

17. Qual tenha sido a sua paixão enternecida para com os infelizes e até que ponto se tenha mostrado dedicado bastará um só exemplo para o dar a entender. Foi o caso que, quando Afonso, nobre infante de Portugal, marchando à frente do seu exército em direcção às regiões mais remotas de Hispânia vizinhas da metrópole que dá pelo nome de Sevilha, devastou quase toda a zona dos sarracenos, os seus homens de guerra, entre prisioneiros incontáveis, fizeram cativos também um grupo de cristãos a que em língua vulgar dão o nome de moçárabes e que aí se encontravam sob dominação pagã, ainda que observando habitualmente o rito da religião cristã, e submeteram-nos à escravatura segundo os direitos da gente da guerra.

Tendo disso tomado conhecimento, aquele homem cheio de Deus condoeu-se em extremo e, ele que nunca saía do claustro, nem sequer até à porta exterior do mosteiro, sobressaltado por zelo de fé, foi-se ao encontro do rei e de todo o seu exército e disse: “Rei e barões todos que sois filhos da Santa Madre Igreja, porque submeteis a vós irmãos vossos reduzindo-os à condição de escravos e escravas? Nisso pecais de verdade contra o Senhor vosso Deus”! Depois de lhes ter falado como cumpria, ainda que brevemente, dizendo-lhes que se não os libertassem, cairia sobre eles a ameaça da grande ira do Senhor, o rei e os seus homens de guerra libertaram toda aquela gente e deixaram-nos partir em liberdade na presença dele.

Para não parecer prolixo, passo adiante o modo honroso como o comandante nobre e os fidalgos vieram também ao seu encontro para o receberem: na verdade, apearam-se das suas montadas quando ele se desceu, e, beijando-lhe respeitosamente a mão, prometeram-lhe aceitar o que ele lhes rogasse. Foi assim que, após terem sido libertados da escravidão, por seu empenho, mais de mil homens, sem contar duas mulheres e crianças, a todos os que daquela gente quiseram ficar em Coimbra o santo deu-lhes um lugar para morarem em torno do mosteiro e alimentou-os durante muitos anos com as provisões do mosteiro, pois estavam desprotegidos e não eram abrangidos pelos costumes da terra.


Uma pintura da oficina de Nuno Gonçalves da segunda metade do século XV representando S. Teotónio. Se repararem bem, apresenta uma mitra (mais tarde colocada aos pés na iconografia), que lhe é atribuído pelo facto de a rainha-condessa D. Teresa tê-lo pretendido como o primeiro bispo da diocese de Viseu restaurada e não por ser prior de Santa Cruz (cujo privilégio, tal como o do báculo, só foi concedido por Celestino III em 1195, embora não possamos descartar usos anteriores menos consensuais). Pode ser visitada no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

Obras e fonte primária usadas:

- Barata, Filipe Themudo (1998). “Navegação, comércio e relações políticas: os portugueses no Mediterrâneo ocidental (1385-1466)”. Fundação Calouste Gulbenkian / FCT, Lisboa, 1ª edição.

- Henriet, Patrick (2015). “Remarques sur la présence des musulmans dans l’hagiographie hispano-latine des VIIIe-XIIIe siècles” in Martínez, Carlos de Ayala

- Fernandes, Isabel Cristina F., “Cristãos Contra Muçulmanos na Idade Média Peninsular/ Cristianos Contra Musulmanes en la Edad Media Peninsular”. Edições Colibri / Universidad Autónoma de Madrid, 2015, p. 151.

- Mattoso, José (2000). “Comércio de escravos em Portugal no século XIV” in “Naquele Tempo: Ensaios de História Medieval”. Temas e Debates, Lisboa, 1ª edição, pp. 379-381.

- Mattoso, José (2007). “D. Afonso Henriques” in “Reis de Portugal”, vol. I. Temas e Debates, Lisboa, 2ª edição, pp. 163 e 179-182.

- Mattoso, José (2015). “Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325”. Temas e Debates, Lisboa, 6ª edição, pp. 290-293 e 439-441.

- Marques, A. H. de Oliveira (1986). “Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV” in “Nova História de Portugal”, vol. IV. Editorial Presença, Lisboa, pp. 39-40.

- Nascimento, Augusto Aires do (2013). “Vida de São Teotónio”. Edições Colibri, Lisboa, 2013.


~ José


 

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média' :


"Danegeld": pagamento de resgates aos Vikings no Condado de Portucale e na Galiza.


Quanto valia o resgate de três moças no ocidente Ibérico do século XI? Para os Normandos o preço era uma manta de pele de lobo, uma espada, uma camisa, três lenços, uma vaca e um saco de sal.


Antes de desenvolver o assunto em causa, o melhor é dar um pouco de contexto: o "danegeld" (tributo aos daneses), era o pagamento que muitos dos reis ou nobres locais da Europa central e ocidental cujas costas marítimas e rios se cruzavam no caminho dos Vikings lhes entregavam em troca de não atacarem os seus domínios nem as gentes que ali viviam. Exemplos bem concretos foram os "sólidos" de ouro pagos pelo rei da Frânkia Ocidental, Carlos o "Calvo" em 876, evitando mais ataques a Paris ou por Æthelred, rei dos Anglo-Saxões, em 1012. Estes pagamentos deixavam os bolsos Normandos cheios e as populações ameaçadas um pouco mais descansadas, mas só um pouco, visto que a mais das vezes os Escandinavos voltavam poucos anos depois, exigindo ainda mais tributos sob pena de sofrerem a já habitual violência.


Viking invasion. Pierpont Morgan Library MS M.736, folio 9v

Na Península Ibérica os registos de raides Vikings não mostraram até agora casos de pagamentos de tais tributos mas contam outro tipo de ataques: raptos de mulheres e crianças para serem vendidos como escravos ou levados nos "Drakkars" para a Escandinávia. A história de três dessas mulheres é contada numa tese de investigação de Hélio Pires, académico do departamento de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa (FCSH): "Dinheiro pela Liberdade: Pagamento de resgates a Vikings no Ocidente Ibérico". O autor conseguiu analisar dois documentos, datados das primeiras décadas do ano 1000, onde são descritos os resgates pagos aos Normandos por familiares dos cativos.


Guerreiros vikings num ataque a Angers (911). Representação presente num manuscrito francês de 1100 (Vida de S. Aubin).

Em julho de 1015, os Vikings entraram no Rio Douro e, durante nove meses, pilharam a zona do vale do Rio Ave fazendo vários reféns, que depois tentaram vender como escravos. Entre esses encontravam-se as três filhas de um certo Amarelo Mestaliz, muito provavelmente um mercador ou um pequeno proprietário rural: "Ali capturaram três filhas minhas, Serília, Ermesinda e Fáquila, e assim fiquei pobre pois não tinha nada que pudesse dar aos Lordemãos (outra palavra galaico-portuguesa para Normando ou Viking) em troca delas". Esse documento adianta ainda como Amarelo decidiu recorrer a uma senhora nobre local chamada Lupa ou Loba, oferecendo-lhe uma propriedade em troca do valor necessário (15 sólidos de prata) para pagar o resgate. Só que Lupa não ficou satisfeita com a proposta e o pobre homem teve de se virar para uma tal de Froila Tructesindes. Aparentemente mais simpático do que Lupa, Froila aceitou a proposta de Amarelo, que conseguiu assim angariar o dinheiro para libertar as filhas, pagando o valor de volta dois anos depois, após vender alguns dos seus bens.


O segundo caso deu-se no ano de 1026, quando um homem de nome Octício descreve como a sua esposa Metília e a sua filha Guncina foram raptadas pelos Vikings nessa mesma zona do vale do Ave. No seu testemunho, o homem conta: "a minha mulher e minha filha foram libertadas após ter dado uma manta de pele de lobo, uma espada, uma camisa de burel, três lenços, uma vaca e três módios (medida de peso) de sal".


Os ataques Normandos às rias baixas galegas obrigaram também à construção de fortificações costeiras, como estas em Catoira, perto da fronteira com Portugal.

Depois de várias incursões no norte da Europa, os vikings decidiram continuar viagem até paragens mais quentes. Chegaram à Península Ibérica em meados do século IX “mas, dada a falta de fontes nórdicas dos séculos IX e X, nomeadamente de relatos dos primeiros ataques segundo os próprios Vikings, podemos apenas especular os motivos que os trouxeram até ao sul da Europa". As teorias são muitas, mas Hélio Pires acredita que a chegada à península aconteceu naturalmente. “A minha suspeita é a de que foram explorando a costa. Simplesmente isso. Uma vez chegados a Inglaterra, continuaram a avançar pela costa francesa — chegaram a Bordéus no século IX — até chegarem à Península Ibérica. E como era uma costa povoada — com cidades –, como era a costa francesa, voltaram. E foram repetindo.”

200 anos de raides na Península Ibérica tiveram, naturalmente, o seu impacto. Além da deslocação da população mais para o interior e de alguma perturbação da vida social local, os ataques constantes obrigaram à fortificação da costa que, antes do seu aparecimento, estava mais ou menos desprotegida. É que os verdadeiros perigos não estavam no mar, mas sim no interior do território. “Existem relatos de cidades, antes da Idade Viking, que mandaram abaixo parte das muralhas para construírem outra coisa porque havia um grande sentimento de segurança. Arrependeram-se passados umas décadas porque se aperceberam que precisavam delas. Antes disso, o conflito era praticamente interno”, refere Hélio Pires.


Quanto a provas de estadias mais ou menos prolongadas carecem de estudos arqueológicos mais aprofundados, esperemos que num futuro próximo se encontre algum vestígio na região do vale do Ave, o que não seria surpreendente, e que a confirmar-se daria mais sustentação ao que se acredita serem povoados Normandos na costa como em Póvoa do Varzim ou em Lordemão, perto de Coimbra. Uma espécie de "Danelaw" à portuguesa.


- Pedro Alves.


FONTES BIBLIOGRÁFICAS:


Hélio PIRES, Incursões Nórdicas no Ocidente Ibérico (844-1147): Fontes, História e Vestígios. Tese de Doutoramento em História Medieval, Universidade Nova de Lisboa, 2012, pp. 7-8.


Hélio PIRES, “Money for freedom: ransom paying to Vikings in Western Iberia”, in Viking and Medieval Scandinavia, 7 (2011), pp. 125-130; idem, Incursões Nórdicas no Ocidente Ibérico […], pp. 91 e 171-190.


Guerreiros vikings muito bem equipados. O chefe do Clã á esquerda e seu porta-estandarte, á direita.

No entanto, seria assim que a maioria dos guerreiros estariam equipados.

A construção de um Longship


Os tipicos navios Viking. Tanto capazes de navegar em mar alto como em aguas relativamente baixas, como os rios.

Recriação histórica de um Longship e a sua tripulação.

Uma tipica casa comunitária Viking.

Veja também este post: O 'Draken Harald Hårfagre'



Veja também este documentário sobre a origem da escravatura em África:





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