top of page
  • Foto do escritorInfoBlog de JD

A Arte da Guerra Medieval

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


KB 72 A 25 Chroniques Fol. 138r

Como era a arte da guerra medieval? Qual era o tipo de pensamento estratégico e tático que levava comandantes, capitães e príncipes a cumprir suas operações bélicas? Existia uma "arte" da guerra propriamente dita, ou esta havia sido deixada de lado, apenas voltando a tona com o desenrolar da "revolução militar" na Idade Moderna?


Um documento datado do dia 17 de setembro de 1417 pode ajudar a responder estas questões, ao menos no caso de qual era o tipo de doutrina militar adotada pelos exércitos franceses com o advento da "Guerra dos Cem Anos". Este plano de batalha riquissimamente detalhado visava ordenar quais seriam as disposições e ordens do exército do duque da Borgonha, João sem Medo(c. 1371-1419), o qual convocara uma das forças armadas mais numerosas de seu tempo em Versalhes, afim de sitiar a capital de Paris, controlada por seus rivais armagnacs.

BNF Français 262 Ab Urbe Condita Fol. 21v

O plano de batalha pode ser lido abaixo:


1. Meu senhor o marechal e os outros senhores da vanguarda devem ser ordenados e instruídos a enviar batedores confiáveis diligentemente e continuamente e em número suficiente para verificar o estado do inimigo; e [eles devem] ver se o que [esses batedores] descobriram é imediatamente informado ao meu senhor [o duque da Borgonha], tal que ele esteja sempre bem informado sobre o que necessita ser feito.


2. Se o inimigo chegar e tomar posição, meu senhor [o duque] não deve em circunstância alguma batalhar contra eles caso estejam próximos de Paris, de onde eles podem facilmente e abundantemente se abastecer de canhões, estrepes, ribaldequins e outros armamentos similares, mas deve retirar-se da forma que lhe parece melhor, se necessário preparando uma poderosa retaguarda que se oponha contra o inimigo.


3. Meu senhor de Salenove, Hector de Saveuse, Jaques de la Baulme, o senhor de Gaspaines, Jehan de Gingin, Charles Labbé, Clavin e Jehan du Clos e Sir Castelain Vast, comandando ao todo cerca de 1000 homens de armas, juntos de todos seus varlets disponíveis que estejam armados, devem excluir de suas formações aqueles com montarias ruins ou inexperientes em cavalgar, e os mandar, sob comando de quaisquer capitães de sua preferência, para reforçar a vanguarda. E se, após isto, eles possuírem menos de mil homens de armas, poderão preencher seus números de quaisquer destacamento que escolherem.


4. E tão cedo que chegue a notícia da aproximação inimiga, esses mil homens de armas, que estarão montados, devem afastar-se da divisão principal do exército e vanguarda de um lado, e caso notem alguma desordem nas fileiras do inimigo que se aproxima, ou que sua cavalaria e infantaria encontra-se entremeada, devem atacar o inimigo vigorosamente.


5. Se o inimigo aproximar-se em boa ordem, a dita força de mil homens de armas deve se retirar longe o suficiente de um dos lados da vanguarda de tal forma que possam posteriormente realizar o que julguem como mais expediente, seja isto atacar a cavalaria inimiga, caso possua alguma, ou seus arqueiros, ou circular sua posição e ataca-los por trás, uma manobra que pode provar ser de grande valor.


6. Caso o inimigo nos ataque, a vanguarda inteira deverá estar disposta a pé na posição mais vantajosa possível, e meu senhor [o duque] a reforçará com um número de homens, tal que retire-os para usar como cavalaria, ou mais.


7. Todos os arqueiros e besteiros no exército, exceto por trezentos, dispor-se-ão na frente da vanguarda em duas alas sob dois pequenos estandartes, e estes homens serão liderados por dois notáveis e valorosos gentis-homens que devem comandar os ditos estandartes e arqueiros.


8. Oficiais devem ser apontados, na vanguarda pelo marechal, e na divisão principal do exército pelo duque.


9. Caso espaço suficiente esteja disponível, a divisão principal do exército, comandado pelo duque, deve se posicionar a pé em um dos lados da vanguarda, próximo dela ou em torno de quarenta passos atrás dela, tal que caso o inimigo forme somente uma divisão, nossa vanguarda e divisão principal podem juntar-se sob o mesmo comando.


10. Se não houver espaço suficiente, a vanguarda com os arqueiros deve se posicionar como explicado acima, e a divisão principal será formada à cinquenta ou sessenta passos atrás dela.


11. Depois desta divisão principal, à distância do lançamento de flecha atrás dela, deverão ser colocados quatrocentos homens de armas montados com seus varlets, juntos com os cem arqueiros referidos acima. Esta, como uma retaguarda, providenciará ajuda, com ambos homens de armas e arqueiros, no caso da cavalaria inimiga seja ordenada a atacar-nos por trás.


12. No conselho do meu senhor [o duque], parece desejável que meu senhor marechal e outros que ele julgue como adequados, ao número de dezesseis ou vinte notáveis, sábios e valorosos homens da vanguarda, devem ficar por trás da vanguarda, montados a cavalo tal que possam reagrupar qualquer um que recuar e os encorajar a fazer seu dever, e assim que disponham de gentis-homens para preencher as brechas que sejam feitas nas fileiras da linha formada pela vanguarda.


13. Da mesma forma, se necessário, certos homens serão colocados por meu senhor o duque atrás sua divisão do exército.


14. Os capitães das companhias de arqueiros devem informar os dois comandantes dos arqueiros dos números de homens inspecionados sob seu comando, assim poderão saber quantos arqueiros dispõe no total.


15. Se possível, e tão rápido quanto for possível, todos os vagões de transporte devem ser dispostos, preparados, atrás da retaguarda para a fortificar. Os comandantes do transporte serão encarregados com este objetivo.


As operações de cerco a castelos bem defendidos eram sempre dispendiosas nos custos humanos e materiais. Também obrigavam a contratação de engenheiros de máquinas de guerra de cerco.

Colocado no contexto da Guerra dos Cem Anos, este plano de batalha é extremamente relevante. Nota-se em primeiro lugar a importância colocada no posicionamento do exército, uma divisão principal e vanguarda reforçadas por uma retaguarda, também auxiliadas por um destacamento de cavalaria e alas de arqueiros, são as "batailles" ou "battaglie" medievais, divisões tipicas dos exércitos medievais que encarregavam-se de funções diferentes: assim a vanguarda visava fazer contato inicial com o inimigo na posição mais vantajosa possível; ao mesmo tempo que a divisão principal, comandada pelo próprio duque da Borgonha, poderia a reforçar ou até mesmo se unir em uma unica formação para combate o inimigo; para a retaguarda ficava a finalidade de atuar como uma reserva fresca, que poderia socorrer seus aliados contra quaisquer prejuízos em momentos oportunos, ou impedir que um ataque surpresa de cavalaria pela retaguarda trouxesse desastre no discorrer do combate, finalmente restava também a retaguarda se opor ao inimigo no caso de uma retirada por meio de marcha de todos os corpos do exército.


Outras tendências do pensamento tático da época são notadas, é obrigatório que os homens de armas franceses na vanguarda e divisão principal desmontem, sendo que aqueles pertencentes a primeira divisão devem estar posicionados na posição mais vantajosa possível, este tipo de doutrina francesa se dá como forma de adaptar-se ao estilo de combate inglês que vêm se desenvolvendo no meio do século XIV, onde os homens de armas cada vez mais desmontam de seus corcéis para batalhar; assim em Poitiers(1356), Agincourt(1415), Taillebourg(1351), Ardres(1351) e Mauron(1352) a maior parte ou uma porção considerável do número de homens de armas decidem lutar a pé.


A "Chronique Normande du XIVe Siécle" descreve a decisão tática na batalha de Mauron: "E Guy de neelle, marechal da França, desceu à pé, ele e todos os seus homens, à frente dos ingleses[...]"


O uso de arqueiros é também notado, longe do que alegado quanto a suposta ignorância francesa frente ao arco de guerra usado pelos arqueiros ingleses, é aparente que, mesmo em uma guerra civil entre duas facções francesas, arqueiros poderiam ser usados em táticas tipicamente associadas aos ingleses, onde alas de arqueiros se posicionavam de ambos os lados do exército, estas táticas foram também um dos fatores que permitiram a famosa vitória portuguesa em Aljubarrota (1385).

Também vemos o tipo de uso cuidadoso de cavalaria, longe de serem ordenados a lançarem-se em cargas frontais impetuosas contra seus inimigos, o duque ordena um destacamento bem montado e habilidoso cavalgando à atacar o inimigo em caso de desordem ou atacarem pela retaguarda, adicionalmente o duque ordena uma força de cavalaria e arqueiros na retaguarda, capazes de frustar o inimigo caso pretenda atacar usando o mesmo tipo de manobra.

Autor: Aleksander Yurievich Averyanov

Finalmente, algo similar ao conceito de "laager" ou "wagenburg", fortificações compostas de vagões bem preparados, é também encontrado. Vemos aqui uma mentalidade remarcavelmente parecida com aquela que possibilitou aos exércitos liderados por Jan Zizka obterem vitórias extraordinárias, não devemos exagerar demais no entanto, o "laager" borguinhão atuaria em um papel mais secundário em batalha, literalmente fortificando a retaguarda e também impedindo o possível saque das posses soldadescas em campo.

Mittelalterliches Hausbuch von Schloss Wolfegg Fol. 53r–53r1 Um "wagenburg" usado por tropas do Sacro Império Romano, um tanto cronologicamente removido do plano de batalha abordado neste post(que é de 1417), pois as forças mostradas aqui se assemelhariam mais as tropas imperiais que tentaram levantar o cerco de Neuss em 1475 contra o exército de Carlos o Temerário.

Qual era o número de combatentes liderados pelo duque nesta série de ordenações remarcáveis? O historiador Richard Vaughan(c. 1927-2014) relata que pelas pesquisas de Jules de La Chauvelays, a força reunida por João em 1417 teria em torno de 10,204 homens, 7,831 das próprias terras do duque e 2,373 estrangeiros. Um amontoado bastante grande para os padrões da época, ainda que não sejamos capazes de estimar o número(que só pode ter sido igualmente impressionante) de não-combatentes acompanhando o exército deve-se enfatizar o poderio do duque da Borgonha, em comparação com os exércitos prévios do duque: o de 1405 possuiria provavelmente 3079 combatentes, desses seriam 2,139 das terras do duque e 940 de fora; o efetivo de 1408 seria de 4,744, 3745 "nativos" e 999 "estrangeiros"; já em 1410 estima-se a presença de 8,427 homens, 4,064 guerreiros das terras do duque e 4,363 de fora.

O plano de batalha de 1417 desaprova a noção antiquada quanto a doutrina militar medieval como caracterizado simplesmente por uma forma de guerrear individualista, sem noções táticas avançadas, aonde os guerreiros supostamente visavam apenas se destacar por honra e glória. É bem verdade que os grandes "feitos de armas" não podem ser esquecidos no contexto dos séculos XIV e XV, mas dificilmente pode-se alegar uma ignorância quanto à conduta bélica no medievo frente a este documento. Fica claro que no período em questão guerrear era uma questão extremamente complexa, uma verdadeira arte da guerra existia.


- Pedro Henrique


Referências Bibliográficas:

- Richard Vaughan: "John the Fearless: The Growth of Burgundian Power"

- T.F. Tout: "Some Neglected Fights between Crecy and Poitiers"



Uma vista na primeira pessoa, da sensação do que seria estar no meio de uma batalha. No presente, é a recriação possível de fazer, mais ou menos histórica ou correcta, da sensação. Sinta a adrenalina... Veja a partir do minuto 3m:50s :




Autor: Peter Dennis

No final nunca há vencedores. A Humanidade sempre perde. Autor: Donato Giancola

0 comentário

Comments

Couldn’t Load Comments
It looks like there was a technical problem. Try reconnecting or refreshing the page.
bottom of page