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A armadura desconhecida de D. Manuel I: o arnês do 'Musée de l'Armée'

  • Foto do escritor: InfoBlog de JD
    InfoBlog de JD
  • 1 de jun. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 12 de out. de 2021

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média':


Caros leitores, é com prazer que hoje lançamos para vosso conhecimento alguns resultados muito preliminares da investigação, ainda em fase de pesquisa pré-artigo, do nosso colega Anton Stark sobre uma armadura de Manuel I (r. 1495-1521) no 'Musée de l'Armée', em Paris.

Este arnês, infelizmente desconhecido tanto do grande público como da maioria dos peritos em História Militar (!), merece toda a nossa atenção, devido às informações importantes com que contribui para o conhecimento do armamento régio em finais da Idade Média.

Todos os parabéns ao nosso co-administrador!

Visão de corpo inteiro do arnês, sem os elementos de reforço. Retirado de Musée de l'armée, Paris: Les armes et la vie, p. 121.

Está guardada numa grande vitrine, na secção de armaduras do século XVI do 'Musée de L’Armée', em Paris. Um contorno relativamente sombrio e até algo desengonçado, um entre demais, não fosse o elevado grau de decoração ou, pelo menos, a placa indicativa onde se lê: “Armure dite d’Emmanuel ler, dit le Fortuné, roi du Portugal (1496-1521)”. Porque é efectivamente de uma armadura ligada a D. Manuel de que estamos a falar. Mas o que faz um arnês real português em França? E, melhor ainda, porque é que ninguém sabe dele por cá?


A Garnitura:

O arnês que nos encara do outro lado do vidro é uma peça de produção italiana, da mão do mestre armeiro Nicolau ou Niccolò Silva (activo entre 1511 e 1549, segundo os arquivos históricos de Milão). A punção (marca) de armeiro patente no arnês não nos deixa margem para dúvidas. Este conjunto é, aliás, um dos únicos quatro arneses de Silva que chegaram até nós, todos eles reunidos – vá-se lá saber por que voltas do Destino - no Musée de l’Armée. Arnês… não bem; ou, não apenas. O conjunto é sim uma “garnitura”, ou seja, um arnês com peças adicionais, adaptável ao combate de campo ou à participação nas lides cavalheirescas – torneios, jogos militares e equestres, paradas -, consoante a necessidade. Apesar de italiano, o conjunto não deixa de apresentar algumas influências alemãs, perfeitamente naturais neste período de confluências na armaria europeia. Tal como se nos apresenta hoje, o arnês integra um elmete com gorjal integrado, espaldeiras (tipicamente italianas - assimétricas, a mais pequena no ombro direito e a maior no esquerdo, com um reforço de pescoço), rerebraços, codais, avambraços e guantes pesadas; couraça sem panceira mas com riste, fraldão e escarcela conjuntos, com o aspecto de uma saia de escamas; coxotes, joelheiras, grevas e sapatos-de-ferro. A isto se juntam uma placa de reforço do peito, belíssimamente decorada com um padrão circular de 24 raios; cotoveleiras de reforço, uma joelheira e restos de uma escarcela direita. É um autêntico puzzle, portanto, a ser montado e desmontado de diferentes maneiras de acordo com o uso a que se destina.

Como seria de esperar numa peça destas, e desta época, há decoração para dar e vender – e ainda bom dinheiro daria, considerando que muita dela consiste em gravações a ouro. A mestria burilada dos artesãos milaneses brilha em quase todas as superfícies, mesmo onde o polimento foi recoberto e desbotado pela patina dos anos. Particular destaque deve ser dado às guantes, com o seu esquema decorativo de floreados sobre o simples relevo de aço; e aos coxotes, as placas que cobrem a perna das virilhas ao joelho: aqui se retratam vários episódios religiosos ou mitológicos, muito ao gosto do Renascimento Italiano, incluindo cenas da vida de São João Baptista, por exemplo, ou uma gravação relativa a Orfeu. Ao longo das bandas laterais das escarcelas, por entre arabescos, encontramos finalmente a esfera armilar que nos permite ligar de forma praticamente irrefutável esta armadura a D. Manuel I.

À primeira vista, parece não bater a bota com a perdigota em termos decorativos. A aparente disparidade de técnicas usadas entre diferentes elementos do arnês pode apontar para alterações posteriores ou para o emparelhamento de peças de diferentes proveniências na grande totalidade do conjunto - nem uma nem outra coisa seriam de estranhar. No entanto, uma análise cuidada da garnitura mostra que, apesar de algumas reparações e redecorações mais tardias, se aplicam os mesmos padrões – arabescos, cordoamento, florões – em todo o conjunto, em zonas descontínuas. Não obstante substituições e alterações que foram sendo feitas ao longo do tempo (o interior dos avambraços, por exemplo, é de manufactura relativamente recente), estamos perante um conjunto razoavelmente uniforme, um testamento em aço da mestria dos armeiros milaneses (e, em muito menor medida, dos restauradores oitocentistas) em época de transição para novos modelos de armamento.


Pormenor da decoração da guante. Os nossos agradecimentos a Pierre Terjanian, a quem a fotografia e todos os seus direitos pertencem por direito.

O Homem por Detrás do Aço:

E a peça em si está apresentada. Mas como é que uma armadura real portuguesa foi parar a Paris? E como podemos determinar que a armadura pertenceu de facto a D. Manuel?

Comecemos pelo mais fácil. Que a armadura está ligada ao nosso Afortunado é inegável: a esfera de D. Manuel, como grande parte das divisas reais europeias, é única e inconfundível. O problema que se nos coloca é saber de que forma se relaciona o homem e a peça. A hipótese mais óbvia e imediata é naturalmente a de o arnês ser pertença real, e tudo na peça para isso aponta — o nível de elaboração, passando pelo fim a que se destina, ao esquema decorativo e aos materiais usados, tudo no conjunto sugere um cliente de uma alta nobreza, no mínimo dos mínimos, e com a divisa à mistura… . Contudo, sem mais registos que não a esfera, não sabemos se o arnês teria sido efectivamente intencionado para uso exclusivo de D. Manuel. Poderia constituir um presente do rei, para alguma outra potestade ou para agraciar algum parente? É uma possibilidade. Vejam-se a título de exemplo os vários arneses oferecidos por Maximiliano I, Imperador do Sacro-Império Romano-Germânico — o belo arnês em estilo “gótico”, obra do mestre-armeiro Lorenz Helmschmied, oferecido ao Arquiduque Sigmund do Tirol em 1484, por exemplo; os dois arneses que se guardam no Kunshistorisches Museum de Viena, encomendados entre 1512 e 1514 para o seu neto, o futuro Imperador Carlos V; ou o arnês enviado a Henrique VIII de Inglaterra em 1514, feito pelo artesão austríaco Konrad Seusenhofer e do qual só nos resta um bizarro elmete de torneio, com cornos e óculos e um sorriso rasgado (uma história para outra altura). Não temos, no entanto, hipótese de determinar esta possibilidade.


Pormenor do coxote esquerdo, demonstrativo do elevado grau de decoração deste componente do arnês. Foto de Marina Viallon.

Pormenor da esfera armilar, no coxote esquerdo. Retirado de Musée de l'armée, Paris: Les armes et la vie, p. 121.

Um Arnês, Muitas Incógnitas:

Já quanto ao peculiar percurso que terá feito para chegar a Paris, esse é outro mistério. Sabemos bem que o arnês se encontrava elencado no inventário da colecção privada do coleccionador francês Georges Pauilhac, doada ou rematada por atacado pelo Musée de l’Armée entre 1958 e 1964. Estamos a falar de uma colecção enorme de armamento vário – incluindo várias peças ibéricas -, composta de várias outras pequenas colecções angariadas ao longo dos anos – incluindo colecções ibéricas, como a colecção Estruch y Cumella de Barcelona -, mas é por aqui que se fica o nosso conhecimento. Porque Georges Pauilhac era um excelente coleccionador, com bom olho para os originais, mas um péssimo gestor e arquivista – de tal forma que, segundo Olivier Renaudeau (director do departamento de armas e armaduras antigas do Musée de l’Armée), não sabemos rigorosamente sobre como ou quando ou a quem adquiriu ele este arnês. Tudo o que sabemos é que já no seu inventário este conjunto aparecia associado a D. Manuel, e assim ficou. Terá sido vendido ou passado a algum familiar d’O Afortunado após a sua morte (ou até em vida), tido sido expedido para terras de Espanha (tal como aconteceu com as tapeçarias de Pastrana, por exemplo), e posteriormente adquirido por Pauilhac após a compra de alguma armaria em leilão? Terá vindo do Arsenal Régio de Lisboa de 1834, sido posta a circular em colecções privadas e arranjada mais tarda por Pauilhac a algum coleccionador seu conhecido?

Certo é que, neste momento, o arnês é completamente desconhecido em Portugal… o que é ainda mais surpreendente se tivermos em conta que já cá foi exposto, em 1983. Durante a XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura, instalou-se na Torre de Belém o núcleo expositivo “Armaria dos séculos XV a XVII" e lá figurava o arnês, sem quaisquer honras de estado. A sua entrada no catálogo oficial “A Mão que ao Ocidente o Véu Rasgou – Armaria” limita-se a uma (péssima) fotografia de corpo inteiro e a uma minúscula descrição expositiva, e é tudo. Porquê esta ignorância, quase a roçar o repúdio, a que foi votado um conjunto tão importante para a nossa História colectiva? É mais uma pergunta, das muitas que ficam para serem devidamente desenvolvidas noutra ocasião; e fica também o belíssimo arnês – um bocadinho de portugalidade feita à italiana com laivos germânicos, como convém ao cosmopolitismo luso do século XVI.


BIBLIOGRAFIA

Blair, C. (1958). European Armour circa 1066 to circa 1700. London: B. T. Batsford

Charles, R. (1965). La collection Georges Pauilhac au Musée de l'armée. Paris: Revue française

Comissariado para a XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura (1983). A Mão que ao Ocidente o Véu Rasgou - Armaria [Catálogo de exposição]. Lisboa: Comissariado para a XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura

Daehnhardt, R. (1998). Acerca das Armaduras de D. Sebastião. Lisboa: Publicações Quipu

Mann, J. (1929). “Notes on the armour of the Maximilian period and the Italian wars”. Em Archaeologia, V. 79, pp. 217-244. London: Society of Antiquaries of London

Pyhrr, S. (1983). “Some Elements of Armor Attributed to Niccolò Silva”. Em Metropolitan Museum Journal, 18. New York: The University of Chicago Press/The Metropolitan Museum of Art pp. 111-121. Retirado de DOI: 10.2307/1512802

Reverseau, R. (1982). Musée de l'armée, Paris: Les armes et la vie. Paris: Dargaud


AGRADECIMENTOS

A Manuel Ferro, que nos chamou a atenção para este arnês com as suas fotografias.

A Olivier Renaudeau, pela amabilidade com que nos respondeu a algumas questões.

A Pierre Terjanian, pela sua pequena mas graciosa publicação sobre o uso de gravações decorativas em armamentos do século XVI, usando as guantes deste arnês como exemplo.

A Marina Viallon, pela fotografia detalhada do coxote esquerdo.

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