Os primeiros textos em galaico-português
- InfoBlog de JD
- 12 de jun. de 2019
- 10 min de leitura
Atualizado: 12 de out. de 2021
Um artigo original de 'Repensando a Idade Média':
Os primeiros textos em galaico-português: formação e evolução do idioma e literatura (séculos IX-XIII)
Após a queda da autoridade imperial romana nas províncias ocidentais do Império no século V, como consequência da fragmentação política do antigo espaço imperial, os vários dialectos do Latim vulgar começaram a divergir cada vez mais ao longo da Idade Média até que acabaram por formar novas línguas: os romances. No Noroeste peninsular, como a maioria dos nossos seguidores deve saber, originou-se a língua galaico-portuguesa, que viria a dar origem ao galego e ao português, pelo menos a partir do século IX. Aqui tentaremos dar uma perspectiva histórico-literária da formação e evolução da língua ao referir os primeiros textos e a evolução da literatura galaico-portuguesa até à viragem do século XIII para o XIV, não pretendendo ser um texto sobre as características lexicais ou gramaticais do português antigo.
Mas que indícios temos da sua existência ao longo da Idade Média e como sabemos em que época se formou? Como é óbvio, dada a ausência de registos orais medievais a não ser a ponta do icebergue depositada nos registos escritos, será impossível dizer um momento exacto em que a língua se formou. Aliás, tal conceito de data de fundação é ridículo pois as línguas evoluem de forma contínua. Para complicar a nossa vida ainda mais, as nossas fontes narrativas, epistolares ou hagiográficas alto-medievais não nos dão indicações directas da evolução dos romances no Norte peninsular, ao contrário de outros casos como a língua proto-romena, possivelmente já atestada nas “Histórias” de Teofilacto Simocata (século VII), ou na Gália, onde temos queixas eclesiásticas sobre as dificuldades do povo entender a missa cantada em Latim no século IX.
Assim sendo, teremos de aceitar as limitações das fontes escritas, escritas exclusivamente em Latim até ao século XII e em uso frequente mesmo posteriormente. O leitor deveria então pensar que não temos indícios nenhuns alto-medievais, mas felizmente há uns pormenores nas fontes não-literárias, nomeadamente os cartulários, que nos iluminam nesta árdua tarefa – erros de escrita dos escribas alto e baixo-medievais que demonstram a sua diglossia, i.e., a coexistência de duas línguas ou registos diferentes da mesma língua. No nosso caso, os escribas falavam já em galaico-português já a partir do século IX, mas escreviam em Latim, revelando na sua escrita as marcas de oralidade com “erros” ortográficos. Mesmo que não saibamos nada sobre a evolução anterior da língua, ao menos temos um “terminus ante quem” para uma altura em que o latim escrito fosse já muito divergente do vernáculo minimamente aceitável. No caso galaico-português, ao contrário do que seria expectável, os primeiros textos com essas características aparecem não em arquivos galegos, mas sim portugueses. Estes são principalmente dois: a doação da igreja de Souselo (870) e a escritura da fundação da igreja de Lardosa (882), um lugar na freguesia de Rans (Penafiel). Embora o primeiro seja já uma cópia do século XI de um documento do século IX, o que não nos dá certezas nenhumas, o segundo texto mencionado é um original com formas que indicam uma evolução da língua como “moastica” em vez de “monastica”, uma síncope característica do galaico-português.
Para quem quiser saber mais sobre a Escritura de fundação da igreja de Lardosa, recomendo o estudo de António Emiliano "O mais antigo documento latino-português (882 a. D.) - edição e estudo grafémico", Verba. Anuario Galego de Filoloxía,. 26 [1999]: 7‐42
Nos séculos seguintes, a língua neolatina manter-se-ia um idioma principalmente oral, enquanto as elites continuavam a usar o latim na cultura erudita. Esta situação começaria a mudar em finais do século XII com dois desenvolvimentos importantes.
Por um lado, aparecem nos cartórios de mosteiros os primeiros documentos escritos completamente em romance no território do reino português em formação, embora fossem frequentemente rascunhos destinados a serem passados para latim: o Pacto de Gomes Pais e Ramiro Pais (1173-1175) e o Pacto de Fiadores de Rio Tinto (1175), um mosteiro beneditino feminino localizado perto do Porto. Por outro, temos os primeiros registos escritos sobreviventes da poesia trovadoresca galaico-portuguesa, primeiro paradoxalmente em Navarra (através de João Soares de Paiva, um nobre português exilado, e dos senhores de Cameros) e mais tarde na Galiza. Assim, o galaico-português adquiria um estatuto escrito e até literário, embora este fosse precário.

Contudo, ainda demoraria algum tempo para esse registo literário ser introduzido entre a nobreza senhorial e a corte régia portuguesas. De acordo com António Resende de Oliveira, os primeiros poemas trovadorescos portugueses que chegaram até nós, o “Tu que ora vees de Monte-mayor” de Gil Sanches e o “Pois que non ei de Dona Elvira” de Rui Gomes de Briteiros, foram escritos por alturas do acordo entre Sancho II e as suas tias em 1223 em Montemor-o-Velho. Com um florescimento acentuado nas décadas seguintes culminando durante a guerra civil de 1245-1247,com a excepção das cantigas de amigo, declinou durante o reinado de Afonso III como um espelho da nova estabilidade política e social que desencorajava certos géneros como a cantiga de amor ou a cantiga de escárnio e maldizer. Só com D. Dinis o registo poético português seria minimamente proeminente comparado com o galego e o brilhantismo da corte de Afonso X. Mesmo assim, houve também inovações no espaço português nesta primeira metade do século XIII, com o aparecimento de novos tipos de documento e novos géneros literários. Pela primeira vez, um documento da chancelaria régia foi escrito em romance com o testamento de Afonso II de 1214, embora este seja um caso isolado por razões que veremos adiante. Também são desta época os primeiros relatos ainda que sob a forma de documentos diplomáticos: a “Mentio de Malefactoria” (c. 1210) e a “Notícia de Torto” (1214-1215), que detalham os danos feitos a Lourenço Soares da Cunha primeiro pelo rei e depois por Gonçalo Ramires, possivelmente a mando do monarca ou apenas como uma disputa pessoal entre estes dois nobres.
Quem quiser ler este testamento numa grafia mais confortável, pode usar esta transcrição. (Nota de JD: Veja aqui outro artigo sobre este documento.)
Na segunda metade do século, embora a corte de Afonso III fosse relativamente pobre em termos poéticos como apontado acima, assistiu-se a uma explosão literária na prosa na corte régia. Seguindo influências francesas, os romances de cavalaria tornaram-se populares na corte e fez-se uma tradução da “Demanda do Santo Graal”, por exemplo, da qual restou uma cópia do século XV e que viria a ser traduzida por sua vez para castelhano no XIV. Textos jurídicos como o “Fuero Real” de Afonso X também seriam traduzidos e a historiografia vernácula assistiria a um arranque com as tradições orais sobre Afonso Henriques, registadas possivelmente numa “Gesta de Afonso Henriques” de acordo com A. J. Saraiva ou mais provavelmente numa “Primeira Crónica Portuguesa” (c. 1270) de acordo com Filipe Alves Moreira. Esta actividade historiográfica teria um paralelo um pouco mais tardio entre a alta nobreza, que mantinha as suas tradições e preservá-las-ia ao patrocinar o “Livro Velho de Linhagens” (1287), de acordo com Luís Krus um “dossier” elaborado por ordens de Gil Martins de Riba de Vizela no mosteiro de Santo Tirso a partir de uma versão mais primitiva elaborada em Arouca como resposta à inquirição ordenada por D. Dinis sobre as terras de Gonçalo Garcia de Sousa, que tinha morrido em 1287 e cuja herança Gil Martins procurava reclamar. Esta actividade de registo prosoprográfico e historiográfico das tradições linhagísticas, continuada pelo “Livro do Deão” (1340) e pelo “Livro do Conde D. Pedro” (1343, com refundições até 1380), pela sua riqueza de informação, é uma característica única das fontes primárias portuguesas sem paralelo em toda a Europa. Algo raro para a historiografia portuguesa, que se encontra na maior parte dos casos com uma falta de fontes por motivos diversos, desde a incúria dos tempos até ao terramoto de 1755 ou a dissolução das ordens religiosas em 1834…
Voltando ao nosso tema e para rematar este longo texto, voltemos ao uso administrativo do português antigo pela cúria régia. Exceptuando o já referido testamento de Afonso II de 1214, não há nenhum documento escrito no romance do Noroeste peninsular até à segunda metade do século XIII, quando reaparecem raramente na chancelaria de Afonso III, estando possivelmente ligadas à actividade de João Peres de Aboim como mordomo-mor entre 1264 e 1279. Só mais tarde, com D. Dinis, o português seria adoptado como a língua única da administração em detrimento do latim, nomeadamente a partir de 1284. O que explica este desfasamento entre a nobreza ou a actividade intelectual da corte portuguesa e as suas práticas administrativas? De acordo com José Carlos Ribeiro Miranda, seria a apropriação do vernáculo por parte da aristocracia peninsular e mais tarde por parte da corte castelhano-leonesa, com Fernando III e mais tarde especialmente com Afonso X, que de certo modo impediu uma adopção mais precoce da língua portuguesa pela administração régia e esta foi feita por D. Dinis para apropriar-se desse instrumento aristocrático para o seu projecto de centralização régia. Pela minha parte, acho precisamente curiosa essa mudança no contexto do que Mattoso chama a “política de nacionalização” dionisina e da promoção do castelhano como língua escrita da corte leonesa-castelhana, que começou irónica e precisamente com Afonso X e continuaria com os seus sucessores.
De qualquer modo, em inícios do século XIV, o galaico-português era já uma língua minimamente madura e continuaria a evoluir a todos os níveis nos próximos séculos, apesar do hiato poético inexplicado entre a morte do conde D. Pedro de Barcelos e a publicação do “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende. Tinha assim completado uma longa viagem desde a sua formação como língua oral nos séculos V-IX e lentamente tornara-se uma língua escrita nos séculos XII-XIII.

" Christus. In nomine domini nostri Jhesu christi. In honore sanctorum Apostolorum Martirum confessorum. Atque uirginum et omnium chorum angelorum salutem Aeternam amen. Ego cartemiro et uxor mea Astrilli abuimus filios et filias nominibus fofinu et gaton et arguiro et uistremiro quinilli et aragunti. et peruenerunt illos filios barones ad ordinem monacorum, et accepit inde fofinus ordinem primiter habitantem in eclesia uocabulo sancte eolalie uirginis fundata in uilla sonosello de presores de ipsa uilla. Ego cartemiro et astrilli una cum filiis meis fundaui eclesiam in nostro casale proprio exepre de nostros heredes uocabulo sancti saluatoris sancti andree apostoli sancte marie uirginis et sancti thome apostoli sancti petri apostoli et sancte leocadie et sancte cristine uirginis. Ego cartemiro et astrilli accepit uoluntas dei. et factus de ipsa eclesia cum ipso casale testamentum post partem de propinquis nostris. et pro remedio animas nostras et omnes defunctorum que in ipsa eclesia sepulti sunt. Contestamus ad ipsa eclesia illa hereditate per suis terminis que habuimus de presuria que preserunt nostros priores cum cornu et cum aluende de rege et habuimus VIª de ipsa uilla que habuimus per particione et medietate de illa fonte de salmegia. contestamus cum suo ornamento eclesie libros casullas uestimenta altaris uel templi cruces super euangelia et corona et calice et patena argentea. contestamus in ipsa eclesia cum quantum ominis hic aprestitum est. signum caballos equas boues et uaccas pecora promiscua cubus et cupas lectos et catedras mensas sautos et pumares amexinares uineales terras ruptas uel barbaras casas lacar petras mobiles uel inmobiles. et diuidet ipso casal ubi ipsa baselica fundata est per casal de louegildo. et inde per rego qui descorret a casa de trasmondo, et inde per ipso uallo et suos dextros et tornat se unde primitus inquoauimus. Ego cartemiro concedo ibidem larea que iacet in çima de ipso uiniale. et habet ipsa larea im amplo VIIIº passales et in longo peruallatur. contestamus ipsum quod in testamento resonat ad ipsa eclesia, et ad propinquis nostris fratrum uel sororum monacorum uel clericorum, et qui bono fuerit et uita sancta perseuerauerit habeat et possideat. contestamus ipsa eclesia cum omnia sua ornamenta et sua prestantia, et qui hunc factum nostrum inrumpere quesierit uel extraneare uoluerit sedeat separatus et excomunicatus et cum iuda traditore habeat participium. et insuper pariat due libra auri bina talenta et a domno qui illa terra imperauerit aliud tantum. et hunc factum nostrum testamentum plenam habeat roborem. Notum die erit pridie kalendas magii era DCCCC VIII.ª Cartemiro et astrilli in hoc testamento manus nostras ro++noramus. Gaton abbas confirmo - Zalama abba conf. - Randulfus presbiter conf. - Biatus presbiter conf. - Gundisaluus conf. - Elias presbiter conf.
Pro testes - Aluaro testes - Trasmondo test. - Gondulfo test. - Viliatus test. - Vimara tes. - Gaton test.
Menendus presbiter notuit.
Fofino. Gaton. astrilli. Arguiru. Vestremiru. Guinilli. et Aragunti placitum facimus inter nos unus ad per scripturam firmitatis notum die quod erit IIII.º nonas aprilis era DCCCCª XIIª super ipsa eclesia et super nostras hereditates quantas habuerimus et ganare potuerimus usque ad obitum nostrum. que non habeamus licentiam super illas nec uindere nec donare nec testare in parte extranea nisi unus ad allios. aut ad ipsa eclesia uocabulo sancti andree apostoli et qui minima facerit et istum placitum excesserit pariet parte de que isto placito obseruauerit X boues de XIIIm XIIIm modios et indicato, nos pernominatos in hoc placito manus nostras ro+++++++ uoramus.
Pro test.: Oliti test., Tramondu test., Arguiru test. -- Menendo notuit. "

" Ego Gomenze Pelaiz facio a tibi irmano meo Ramiru Pelaiz isto plazo ut non intret meo maiordomo inilla villa super vostros homines deslo mormuiral. & de inde antre as casas d’Ousenda Grade & d’Elvira Grade. & inde pora pena longa & de ista parte perilla petra cavada de Sueiro Ramiriz dou vobis isto que sejades meo amico bono. & irmano bono & que adjuderis me contra toto homine fora el rei & suos filios. & si Pelagio Soariz. ou Menendo Pelaiz. ou Velasco Pelaiz. ou Petro Martiniz. Daquele que torto fezer a Don Ramiru. ou a Don Gomeze si quiser caber en dereito & se non ajudarmonos contra illos. Des illo mormoiral ata en frojom non laver {jure} mala Dos ergo illos que abet hodie fora se ganar herdade de gavaleiros ou de engeoida. & in vostra herdade habet tal foro quale dóóspital. & herdade for de penores & ibi morar suo dono dar calupnia & fosadeira & si se for dela abere tal foro quomodo vostros herdades. Se {homenem} entrar enaquela vila que torto tenia a Don Gomeze dar dereito dele si seu for de Don Ramiro {quen} de fora venia. & {quen} isto plazo exierit ad vos Ramiro Pelaiz se erar coregelo & se non {q} volverit peitar quinientos soldos. jsto pleito est taliado de isto maio que venit ad .IJs. anos. "
" [Linha 1] Noticia fecit pelagio romeu de fiadores Stephano pelaiz. xxi. solidos lecton. xxi. soldos pelai garcia. xxi. soldos. Gũdisaluo Menendici. xxi soldos
[Linha 2] Egeas anriquici xxxta soldos. petro cõlaco. x. soldos. Gũdisaluo anriquici. xxxxta. soldos Egeas Monííci. xxti. soldos [i l riscado] Ihoane suarici. xxx.ta soldos
[Linha 3] Menendo garcia. xxti. soldos. petro suarici. xxti. soldos Era Ma. CCa xiiitia Istos fiadores atan. v. annos que se partia de isto male que li avem "


Nota: para mais informações sobre a evolução particular na Língua Portuguesa, remeto para este artigo postado posteriormente.
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