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A TRADIÇÃO DO “PÃO POR DEUS”

Atualizado: 6 de nov. de 2022


Catarina de Clèves distribui esmolas pelos pobres e doentes (c. 1440). Pierpont Morgan Library. MS M.917/945.

Um artigo original de 'Repensando a Idade Média',


A TRADIÇÃO DO “PÃO POR DEUS” EM PORTUGAL E NO BRASIL – UMA ORIGEM MEDIEVAL NO DIA DOS FINADOS ?


Numa época em que várias tradições populares portuguesas e brasileiras têm sido verdadeiramente “abafadas” por hábitos originários de outras latitudes, nomeadamente anglo-saxónicas, é importante relembrarmos algumas antigas práticas associadas a datas festivas do calendário litúrgico e secular. Uma das mais importantes era o Dia de Todos os Santos, celebrado a 1 de Novembro, e o dos Finados, ou dos Fiéis Defuntos, no dia seguinte. A recorrente relação com práticas funerárias anteriores ao Cristianismo, com expressão nos festejos do “Halloween” (corruptela de ‘All Hallows’ Eve’, véspera de Todos os Santos), subalterniza outras explicações para as suas origens pagãs e a eventual adopção dessa simbologia pelos cristãos.


A ORIGEM DO DIA DE TODOS OS SANTOS:


Com o aumento do número de mártires provocados pela perseguição do imperador romano Diocleciano no século IV, a Igreja começou a celebrá-los anualmente num dia único, mesmo que as primeiras comunidades cristãs os comemorassem em datas diferentes: a 13 de Maio em Edessa (referida por Santo Efrém em c. 359); no domingo seguinte ao Pentecostes em Antioquia; ou a sexta-feira seguinte à Páscoa pelos cristãos da Síria (New Catholic Encyclopedia, 2003: pp. 288, 318). No século V, São Máximo, bispo de Turim e mais tarde santo padroeiro da cidade, celebrava todos os mártires também no domingo seguinte ao Pentecostes, chamado de ‘dominica in natale sanctorum’ (natividade dos santos) pelo “Comes Romanus Wirziburgensis”, uma lista de epístolas do século VIII. Nesta época, a celebração litúrgica já abarcava todos os santos, quer tenham sido martirizados, ou não (Ibid.: p. 289).


João, o Diácono (século IX) aponta a origem do Dia de Todos os Santos no ano de 609 ou 610 quando o Papa Bonifácio IV estipulou a data oficial de 13 de Maio como dia “dedicatio Sanctae Mariae ad Martyres”, enquanto pedia a Focas - imperador romano em Constantinopla - a consagração do edifício do Panteão em Roma, à Virgem e a todos os mártires (Monumenta Germaniae Historia, Hanover, 1848: pp. 7, 8, 20 apud MACDONALD, 1976: p. 139). Talvez esta data tenha sido escolhida porque já era associada a todos os santos mártires pelas igrejas do oriente, ou, como defendem outros liturgistas, porque caía nas mesmas datas do festival romano pagão da ‘Lemuriae’, ou ‘Lemuralia’, em que os espíritos inquietos dos mortos eram aplacados por invocação dos deuses ‘lares’ (Op. Cit., 2003: p. 289); (MATTOSO, 1992: p. 27).


DE 13 DE MAIO PARA 1 DE NOVEMBRO:


As razões da troca para a nova data de Novembro não foram ainda completamente provadas; o que se sabe é que a mudança terá começado quando o Papa Gregório III dedicou nesse mesmo dia do ano de 732 um oratório a “todos os apóstolos, mártires, confessores e a todos os justos e perfeitos que repousam por todo o mundo”, mesmo que a data precisa não seja de todo conhecida (Ibidem). Outras fontes referem que Gregório convocou um sínodo em Roma no dia 1 de Novembro de 731 para debater a política iconoclasta que grassava em Constantinopla (MCCLENDON, 2013: pp. 215-216). Em inícios do século IX as igrejas na Irlanda, Inglaterra e Baviera já comemoravam o dia de Todos os Santos a 1 de Novembro, de acordo com documentos eclesiásticos irlandeses como os Martirológios de Tallaght e Óengus (Op. Cit., 2003: pp. 289-290).


Em 798 o bispo Arno de Salzburgo decretara a celebração nesse dia para todas as dioceses sob seu controlo no sudoeste da Alemanha e o teólogo Alcuíno de Nortúmbria (735-804) terá usado a sua influência junto de Carlos Magno para introduzir essa data litúrgica no reino Franco (Ibid.: pp. 242-243). Essa influência traçada desde a Irlanda para Inglaterra e daí para o centro da Europa levou alguns académicos, como os Filologistas John Rhys e James Frazer, a relacionar a adopção dessa data como uma mera substituição do antigo festival dos druidas pré-romanos (celtas*) do ‘Samhain’, dedicado aos mortos (HUTTON, 1996: p. 364). Mas Hutton desmente esta relação funerária, com base em fontes documentais que referem o ‘Samhain’ como um festival marcando a passagem da época das colheitas de Verão para as de Inverno, sem qualquer conotação com os mortos (Ibidem).


Outra explicação foi dada pelo teólogo francês Jean Beleth (1135-1182) indicando que o Papa Gregório IV aproveitou a data de origem hiberno-anglo-germânica por motivos bem mais prosaicos, visto que a recepção aos peregrinos em Roma era mais segura em Novembro do que em Maio (devido à malária). Segundo Ado de Vienne (800-875) e Sigeberto de Gembloux (1030-1112), o mesmo pontífice aconselhou o imperador Carolíngio Luís, o Piedoso, a tornar obrigatório esse novo dia por todo o império no ano de 835 (Op. Cit., 2003: p. 289). Já Sicardo de Cremona (1155-1215) propôs outro Papa, Gregório VII, como responsável pela mudança da data no século XI, pois o anterior dia 13 de Maio acabou por desaparecer dos livros litúrgicos ao longo do século seguinte (Ibid., p. 290). O que parece mais ou menos consensual é que a mudança do dia surgiu em regiões diferentes, por motivos distintos, seguindo do norte para o sul da Europa.


O DIA DOS MORTOS:


Inicialmente, a associação entre a veneração dos mártires e dos mortos foi recebida com bastante resistência por parte de alguns teólogos da Igreja. No século IV, tanto Ambrósio de Milão como Santo Agostinho tentaram restringir nas comunidades cristãs aquilo que consideravam ser certos hábitos de origem pagã: a invocação dos santos como protectores dos falecidos - chegando até a enterramentos junto das sepulturas de santos (‘depositio ad sanctos’) - e os banquetes funerários celebrados pelas famílias em honra dos seus entes queridos ou em memória dos mártires (BROWN, 1981: pp. 26-27). O culto das relíquias chegou mesmo a criar polémica na Gália e Hispânia com argumentos a favor e contra tais práticas (Ibidem).


Até ao século X assistiu-se então a uma “oficialização” desses hábitos antes vistos como pagãos que foram sendo transpostos para as práticas funerárias cristãs, acrescidas de doações aos santos ou requerimento de missas pela alma dos mortos (Op. Cit., 1992: p. 25). Nesse sentido, optou-se pela instituição oficial da festa dos Fiéis Defuntos (dia dos Finados) a seguir ao de Todos os Santos, por Odão (ou Odilo), abade de Cluny, em 998. Dada a influência desta comunidade monástica, o hábito depressa se espalhou por França, Alemanha e Inglaterra, sendo finalmente adoptada em Roma e Itália, mas apenas no século XIII (Op. Cit., 2003: p. 290).


Também na liturgia hispânica, o culto dos defuntos esteve sempre presente nas práticas funerárias, como mostram as passagens das missas no ‘Liber Ordinum’ (Op. Cit., 1992: p. 27). Nesses rituais ainda perduravam resquícios de paganismo, mais ou menos intensos de região para região e cuja “cristianização” acompanhou a mesma evolução do resto da Europa. Em finais do século VI, o 3º Concílio de Toledo tentou introduzir o cântico dos salmos em substituição do “canto das almas” com que os familiares acompanhavam as procissões fúnebres (SANCHÉZ, 2009: p. 595), s,endo que outra das tradições que mais perduraram no tempo foram os já citados festins funerários, associados a antigos costumes pagãos de levar velas, pão, vinho e outros alimentos para serem colocados junto às sepulturas nos domingos e dias festivos. Tal prática, que o 2º Concílio de Braga em 572, tentou proibir em vão (Ibidem), continuou a ser praticada em Portugal até aos dias de hoje, tendo sido inclusive levada para o Brasil a partir do século XVII e resultado na tradição do “Finadinho” ou do “pão por Deus” (CASTILHO & CORDEIRO, 1868: p. 261).


Viterbo, no seu “Elucidário” (p. 140), descreve os banquetes das Festas dos Santos a que davam o nome de “bodos”, e onde se oferecia uma lauta refeição aos pobres (MACHADO, 1999: p. 50). Leite de Vasconcelos, no início do século XX, escrevia que “No dia dos finados, à noite, fazem-se grandes fogueiras nas praças, nas encruzilhadas das ruas. As mulheres velam aí e rezam pelas almas” (cf. Etnografia Portuguesa, Volume VIII). Tal como ainda hoje, em certas aldeias portuguesas, ainda é costume (cada vez menos) fazer-se grandes fogueiras chamadas “fiadeiros”, à volta da qual se reza pelos defuntos e se confraterniza com iguarias trazidas pelos moradores (DIAS, 2008: p. 33).


A ORIGEM MEDIEVAL DO “PÃO-POR-DEUS”:


Entre estas tradições surgiu o hábito de pedir o “pão por Deus” na região de Lisboa, os “bolinhós” em Coimbra, os “bolinhos” em Leiria, no Alentejo ou no Algarve, o “santoro” nas Beiras, e os “fiéis de Deus” em Braga (OLIVEIRA, 1995: pp. 179-191), típicos do Dia dos Finados em Portugal, e os seus já referidos equivalentes no Brasil. As crianças batem (batiam) às portas e pediam pão, nozes ou qualquer outra coisa que lhes quisessem oferecer - semelhante ao “doçura e travessura” do ‘Halloween’, também esta decalcada da respectiva tradição inglesa do “pão das almas” (‘soul cake’) (DODGE, 1883: p. 93). A sua origem medieval era enquadrada pela caridade das confrarias religiosas, que distribuíam esmolas, ou bodos, aos pobres das suas comunidades em dias litúrgicos, como a confraria do Espírito Santo do Vimieiro, que em 1282 estipulava: “que dem hua vez no anno en dia de Santo Spiritu pão e carnes aos pobres por Deos” (GOMES & PAIVA & ROSA, 2003: p. 14). Dessa prática terá muito provavelmente saído a ladainha que, séculos mais tarde, as crianças pediriam como esmola: “dai-nos pão, por Deus”.


Conforme se lê, o dia estipulado desta oferta em 1282 não era no Dia dos Finados. No entanto, Viterbo e Albano Bellino associaram a oferta de pão cozido aos pobres no dia dos fiéis defuntos, citando ambos um suposto documento do século XV que referia: “Pagaredes o dito fôro em cada hum anno em dia de pão por Deos”. (VITERBO, 1865: p. 265); (BELLINO, 1900: p. 166). Roger Lee de Jesus refere que Leite de Vasconcellos também fez essa associação segundo indicação do seu amigo Pedro de Azevedo, que cita um documento do século XIV (cf. Etnografia Portuguesa); (podcast “Falando de História”). Mesmo que tais documentos não tenham sido propriamente identificados, a ligação parece sair reforçada com outro documento de 1488, propriamente referenciado, onde se lê: “quando virem festas de Nosso Senhor e de Santa Maria (…) e dos Apóstolos e de São Cristóvão, e de São Sebastião, e de São Lourenço, e de São Francisco e de Santo António se dirão as próprias missas das ditas festas e santos e per dia de pão por Deus ou antes per três dias os ditos frades (…) dirão uma missa de finados com suas horas cantadas e ladainhas (…)”. (ANTT, mº 5, nº 183 apud VILAR, 1990: pp. 331-332).


O facto de em vários documentos surgirem referências conjuntas a todos os santos e ao “dia de pão por Deus” pode ser uma indicação de que a associação entre ambos se fazia já na Idade Média. Não obstante reconhecermos que estas citações são algo dúbias pois o “dia de pão por Deus” pode muito bem referir-se as outras datas que não o Dia dos Finados. O que sabemos com mais certezas é que essa ligação explícita se terá cimentado em séculos posteriores, já nas Idades Moderna e Contemporânea, quando as tradições das crianças pedindo “pão por Deus” às portas dos vizinhos começam a ser frequentemente documentadas (BRAGA, 1986: pp. 179-231); (Op. Cit., 1995: pp. 179-191).


*O uso do termo “celta” deve ser usado com parcimónia, dado que não se enquadra numa designação cultural típica, mas de um “chapéu-de-chuva” para expressões de culturas pré-romanas com origens geográficas europeias diferentes, mesmo que partilhassem um certo número de características linguísticas, artísticas e/ou culturais.


- PEDRO ALVES.



P.S: Deixo um caloroso agradecimento a Ana Pereira Ferreira e a Roger Lee de Jesus pela ajuda na compilação de fontes e na transcrição dos documentos.



FONTES PRIMÁRIAS:


- “Comes Romanus Wirziburgensis”, published by Akademische Druck- u. Verlagsanstalt (ADEVA), 1968. Ligação: Virtuelle Bibliothek Würzburg (uni-wuerzburg.de)


- ANTT CSCS/010/0005/00183. Ligação: Caderno em pergaminho relativo à instituição da capela de João de Sousa, cavaleiro da casa de el-rei, no Convento de São Francisco de Santarém. - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)



FONTES BIBLIOGRÁFICAS:


- BELLINO, Albano (1900). “Archeologia Christã”, Lisboa: Empreza da Historia de Portugal.


- BRAGA, Teófilo (1986). “O POVO PORTUGUÊS II: Nos seus costumes, crenças e tradições”, Lisboa: Etnográfica Press.


- CASTILHO, Alexandre M. & CORDEIRO, Antonio X. R. (1868). “Almanach de lembranças Luso-Brazileiro para o anno de 1869 com 437 artigos e 90 gravuras”, Lisboa: Typographia Franco-Portugueza.


- DIAS, Margarida D. (2008). “O ritual do Dia dos Mortos na aldeia transmontana de Meixide : a expressão estética da lembrança e a procura da imortalidade”, Tese de Mestrado em Estudos da Criança na Universidade do Minho.


- DODGE, Mary Mapes (1883). “St. Nicholas Magazine”, Scribner & Company.


- FÉROTIN, M. (1904). “Le Liber ordinum en usage dans l’église wisigothique et mozarabe d’Espagne du cinquième au onzième siècle”, Paris 1904.


- GOMES, Saul António & PAIVA, José Pedro & ROSA, Maria de Lurdes (2003). “Portugaliae Monumenta Misericordiarum”, Volume 2, Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas.


- HUTTON, Ronald (1996). “The Stations of the Sun: A History of the Ritual Year in Britain”. New York: Oxford Paperbacks.


- LOPES, Maria Antónia (2018). “DAR DE COMER A QUEM TEM FOME E DE BEBER A QUEM TEM SEDE NOS COMPROMISSOS E NAS PRÁTICAS DAS SANTAS CASAS DA MISERICÓRDIA (SÉCULOS XV-XXI)” in As Sete Obras de Misericórdia Corporais nas Santas Casas de Misericórdia, Braga.


- MACDONALD, William L. (1976). “The Pantheon: design, meaning, and progeny”, Cambridge, Mass.: Harvard University Press.


- MACHADO, Carlos Alberto (1999). “Cuidar dos Mortos”, Instituto de Sintra.


- MATTOSO, José (1992). “O Cultos dos Mortos na Península Ibérica (Séculos VII a XI)” in Lusitania Sacra, 2ª Série, Nº4.


- MCCLENDON, Charles (2013). "Old Saint Peter's and the Iconoclastic Controversy", in Old Saint Peter's, Rome. Cambridge University Press.


- NEW CATHOLIC ENCYCLOPEDIA, 2nd Edition, Volume I, Thomson Gale.


- OLIVEIRA, Ernesto Veiga de (1995). “Festividades Cíclicas em Portugal”, Lisboa: Etnográfica Press.


- SANCHÉZ, Jaime Vizcaíno (2009). “La presencia bizantina en Hispania, siglos VI-VII: la documentación arqueológica” in Antiguedad y Cristianismo: Monografias Históricas sobre la Antiguedad Tardia, nº XXIV, Universidad de Murcia.


- VASCONCELLOS, José Leite (1982). “Etnografia Portuguesa: tentame de sistematização”, Volume VIII. Imprensa Nacional de Lisboa.


- VILAR, Hermínia (1990). “A vivência da morte na Estremadura portuguesa : 1300-1500”, Dissertação de Mestrado de História Medieval apresentado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa: Ligação: RUN: A vivência da morte na Estremadura portuguesa : 1300-1500 (unl.pt)


- VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de (1798). “Elucidario das palavras, termos e frases, que em Portugal antigamente se usaram” (2ª Ed.), Volume I, Tomo Primeiro. Lisboa: A. J. Fernandes Lopes.




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